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quinta-feira, 16 de junho de 2011

CONTO: ASCENSOR - Mário Garrastazu Médici

Como das outras vezes, o taciturno e mal-humorado diretor hesita alguns passos diante do aço escovado. Não passa de uma caixa, apenas uma caixa retangular. Sobe e desce em segundos. E os portões abrem e fecham ao comando humano. Ainda assim, não deixa de ser invadido por algo próximo ao sentimento claustrofóbico a cada vez em que se depara com o elevador. Sente o mesmo no chuveiro, quando fecha o box de vidro temperado e o vapor abafado nubla tudo. E nos provadores das lojas, não importa quão condicionado o ar, o suor vem inevitável. Voar, só em casos de emergência sem saída ou morte na família, incontornável urgência.
Dia atrás de dia, se vale das escadas até o décimo-oitavo andar, para assinar sem ler a papelada gigantesca da vida da firma. A condição atlética quase impecável aos cinquenta e dois garante o fôlego necessário à negação dos medos. Não fossem as duas décadas de fumo mentolado (na agradável ilusão dos benefícios de um fármaco com a terminação “ol”), e poderia subir em maior velocidade, saltando os degraus ímpares.
Hoje não.
Está atrasado para uma reunião decisiva, marcada por ele mesmo (como, de regra, todas em que se digna a comparecer, afinal, quem manda nesta merda?). Para bem cedo, com o objetivo de evitar a aglomeração natural do prédio a partir das oito da manhã, o burburinho medíocre que tanto o irrita, e o falatório natural diante da presença de toda a cúpula da empresa a recepcionar as caras desconhecidas – todos já provavelmente diante de suas xícaras na grande mesa de reuniões do último andar da indústria de conservas.
Então, ao elevador, paciência.
As portas se abrem, apenas ele e a ascensorista. Como de hábito, mal repara a outra alma no ambiente, especialmente as que se encontram em posição subalterna. Nessas ocasiões, prefere o alheamento autista de seus próprios pensamentos a qualquer tentativa de diálogo, em especial pela ojeriza aos constantes salamaleques ofertados por essa gentinha desinteressante. Mas nota, já com o suor frio escorrendo no rosto e contando mentalmente os andares, que quem conduz o sarcófago é a “cigana”.
Sequer lhe imagina o nome, mas recorda de outros poucos atrasos a lhe empurrar a contragosto para o elevador, de outras manhãs em que já teve oportunidade de subir à sua sala pelos dedos dessa senhora. A pele tirante ao caramelo, o farto cabelo negro preso a um coque no alto da cabeça, a indefectível pinta ao lado do nariz. Uma verdadeira cigana de antigas histórias, já em seus quarenta anos. O que motivou o apelido secreto, no entanto, não foi apenas a aparência. Foi o fato de, a cada vez em que sofreu os incontáveis segundos em sua companhia, tê-la ouvido endereçar conselhos ou vaticínios a algum dos passageiros. Malgrado seu distanciamento, obriga-se a lembrar dessas ocasiões. Pela voz surpreendentemente macia da ascensorista. Pelo ótimo par de peitos a se revelar vez ou outra por um teimoso botão do justo uniforme com o emblema da prestadora de serviços. Mas, acima de tudo, porque cada segundo em que necessitou viajar nessa diabólica máquina sem janelas tornou-se inesquecível.

“Pinta as unhas com esse esmalte, teu homem vai enlouquecer. E ele está por ir embora”
Não vai à praia, guria, não perde teu dinheiro que vai chover três dias seguidos”
Deixa o carro em casa hoje e volta da festa de táxi. Vai por mim”
Essa tosse não é só gripe, bate uma chapa amanhã sem falta”.

Lembra de invariavelmente ter sentido uma profunda irritação pelas não-solicitadas predições da cigana, mas sobretudo de as levar vivas como ilustração de seus próprios momentos de desconforto.
Como agora.
Ainda faltam dois andares. As têmporas molhadas. Os olhos cerrados, sequer pôde arriscar uma mirada nos bons peitos da mulher, sempre tão ciente das feminilidades no entorno. Apenas mais um andar. Agora. Abre os olhos, o oxigênio familiar do décimo-oitavo ativando o mentol e lhe queimando os pulmões.
Está saindo, no passo apressado do costume, quando ouve:

“Se tu não assinar, a empresa quebra em dois anos”.

Não “senhor diretor”, “chefe” ou “vossa senhoria”.
“Tu”. 
Petulante intrometida do caralho.
Não sabe como essa vaca descobriu sobre a reunião secreta de hoje. Mais que isso, como descobriu sobre o motivo de ter passado sem dormir as últimas duas noites. E mesmo assim não ter chegado a uma decisão satisfatória. Mandar os uruguaios à merda e continuar com a gigantesca dificuldade de manter o mínimo, honrar a folha de pagamento da companhia e os fornecedores indispensáveis. Ou vender uma parcela considerável das operações pela quantia aviltante que os putos ofereceram, e assim, pela tortuosa via da prostituição do nome da empresa fundada pelo pai, salvar o emprego de toda essa cambada de puxa-sacos.
Depois, durante toda a tarde daquele dia, enquanto dirige sua caminhonete rumo à serra para um auto-exílio forçado de uma semana, o diretor reflete sobre o poder das palavras da cigana. Não iria suportar os olhares, alguns condescendentes, outros irônicos, ao saber da decisão do conselho deliberativo. Preferiu o isolamento de seu chalé fora da cidade, o clima de montanha a aliviar um pouco o desconsolo. Lembra de ter chegado ao prédio pela manhã decidido a rejeitar a proposta. Embora toda a admiração por Benedetti e Ostolaza, a vontade era ter mandado os uruguaios levarem a porra do contrato para o dono da boate instalada duas ruas mais abaixo, na larga avenida iluminada, e de preferência trazerem sus mamacitas para tocarem o novo negócio.
No entanto, assinara.
Quase em transe, sem uma palavra de oposição, para espanto e gáudio dos carequinhas do conselho, que fossem comer assado de tira e morrones com os putos, ele ia ficar sem dar as caras na empresa por uma semana, ao menos. Não ia mostrar àquela cambada essa expressão de quem foi obrigado a comer não só o frango e as batatas, mas as ervilhas e as rúculas.
E depois, havia problemas de ordem médica a assumir como preocupação real.
Na véspera do dia do retorno, última noite a dormir fora do barulho da cidade grande, o sonho se repete. Pela terceira vez naquela curta semana. Um barco no meio do oceano de águas calmas, um dia límpido de sol, senhores de meia idade e garotas louras sem a parte de cima do biquíni. Cerveja geladíssima. Um paraíso artificial de que ele nunca desfrutara, não pela dificuldade do acesso, mas pela têmpera forjada pelo pai, pela lembrança dos dias difíceis e da provisoriedade dos pequenos prazeres diante do peso das grandes responsabilidades. No sonho, no entanto, essas amarras não estão. Ele é outro homem, sorridente e confiante, afável e atencioso, desprendido e corajoso, a ponto de aceitar o desafio, sim, vamos mergulhar, me alcança esse tubo de oxigênio, me ajuda aqui, lourinha, como é mesmo que faz.
E mergulha.
Como se mergulha, se voa, se corre e se cai nos sonhos.
Bem devagar. Sem riscos.
Uma vez na profundidade, porém, recorda súbito seus velhos pavores, os elevadores, os aviões, o solitário e abafado quarto escuro no pequeno casebre rural da infância, quando o pai saía para vender suas conservas e a mãe ia fazer as unhas da mulher do delegado. Chora, um choro estranho de olhos bem abertos, preso entre as paredes de água mais salgada. E implora para subir, sabendo que ninguém vai ouvir sua prece muda, pois não há mais loura alguma no barco, sequer barco há mais. Apenas o céu claro de um dia de verão,  migrando para o violeta e para o breu, à medida em que seu corpo afunda no vazio.
Desperta em pânico, encharcado e apequenado num canto da enorme cama.
Na manhã seguinte, a coluna é um ouriço de mil agulhas, cada vértebra ressentindo a tensão do pesadelo. Mal pode andar, pede à mulher que guie de volta à cidade. Tem de aparecer na empresa ainda de manhã, todavia, mostrar seu altivo porte de dignitário, esvaziar o infame trocadilho de que “a fábrica está indo para o vinagre”. Além disso, vai passar a tarde fora, a maldita bateria de exames.
A contragosto, pára diante do elevador, não conseguiria vencer sequer um lance naquele aleijão. Quando as portas se abrem, lá está a cigana. Do mesmo jeito insolente, parecendo concentrada apenas na botoeira e no sobe-desce, mas com as antenas ligadas e o sorrisinho superior no canto da boca.
Não vai dar confiança pra essa bruxa dos infernos.
Rosna um bom dia apenas porque a ruiva do RH subiu com ele, e com aqueles olhos verdes ela sempre desmonta qualquer carranca. Mas ela logo desembarca, e a viagem torturante continua sob o timão da cigana, ambos em silêncio total, até o cume do prédio.
Ao chegar no destino, o diretor tenta se arremessar para fora do elevador mal as portas se abrem, para respirar e não escutar qualquer presságio. Mas não consegue evitar de ouvir a voz macia:

“O menino. Não te preocupa mais. Não é maligno”

O arrepio recupera as doídas vértebras num instante, como uma injeção miraculosa. Faz menção de voltar e pedir por mais, mas a nave fechou as portas e já inicia sua trajetória rumo ao subsolo.
O menino. O único filho, um rapaz encantador de dezessete anos, de muitos cabelos e raras palavras, péssimo aluno e ótimo atleta. Ciclista de percursos longos. Afastado por algumas semanas das estradas e pistas pelo surgimento de um caroço dolorido no testículo esquerdo. Câncer, o diretor tem certeza, desde a primeira queixa tímida do garoto. E hoje à tarde, após o resultado dos exames complementares, sente que estará pronto para segurar a mão do filho, sem desmoronar, ao ouvir a sentença.
E agora essa.
A bruxa diz que não é nada, que é só um carocinho, que não é maligno, que o moleque vai fazer dezoito, que ainda vai completar a volta da França e lhe dar netos remelentos, e o diretor amassa seu ceticismo com a ponta do sapato, como faz com os cigarros nas calçadas, deixando a onda de euforia tímida assumir o controle. Assina seus despachos mais às cegas do que nunca, contando os minutos para sentar na frente do doutorzinho de óculos redondos e dizer muito obrigado, quanto foi, até nunca mais. E abraçar o menino bem apertado, talvez até trocar meia dúzia de palavras.
Nos dias que se seguem, o diretor torna a hesitar diante das portas prateadas. A coluna já está recuperada, a disposição impecável, renovada pela confirmação do diagnóstico favorável. Porém sente agora, como contrapeso à fobia mórbida do confinamento, aflorar uma curiosidade irresistível pela próxima visita ao oráculo. Seu Delfos particular.
Mas sente medo.
E se ela disser que vai perder tudo? Que o time não vai para as finais? Que vai ficar cego, ou ter um AVC na estrada, ou  vai sofrer um ataque cardíaco fulminante, e morrer entre o nono e o décimo? Agora que o diretor sentiu o peso dos augúrios da cigana, sente receio até de lhe espiar o decote. Bruxa.
Chegam os festejos de final de ano, seguidos das férias coletivas da empresa. A esse período, o diretor soma, por sua conta e risco, três semanas sob o sol (com louras desnudas por perto, sim, mas sem chegar perto de barcos, mergulhos e alto-mar) em sucessivos balneários espanhóis.
Sozinho.
Relembra as derradeiras palavras da cigana, o dia final de trabalho, após assinar a última exaustiva remessa de papelada inútil para o fechamento do ano da companhia. Pensa em descer a escadaria, mas quando percebe está diante das portas abertas do elevador.

“Desce?”

Sim. Desce. Ainda com desconforto, mas com olhos e ouvidos atentos a qualquer sussurro da cigana, não mais espremido junto ao espelho do fundo, e sim praticamente ombro a ombro com sua pitonisa. Na véspera do Natal, em meio à descida, sem sequer esperar chegar ao térreo, a pergunta surge e o atinge na boca do estômago:

“Por que, com tantos lugares interessantes para ir, tu vai voltar para aquela casa triste?”

O diretor gagueja um boas festas e sai apressado. Não tem resposta para a pergunta da cigana, embora tenha procurado tanto e em tantos lugares nos últimos dez anos do casamento. Não consegue evitar o sentimento, contudo, de que não há mais necessidade de procurar.
De volta ao trabalho, o bronzeado extraterrestre nunca visto antes causando espécie em porteiros e recepcionistas, o diretor procura ansioso pelo elevador. Precisa com urgência apertar o botão, ver as portas se abrirem, dizer bom dia para a cigana, contar que a empresa fechou o ano no azul pela primeira vez em anos, que o moleque voltou a pedalar. Precisa dizer que deixou a mansão triste e agora vive num apartamento minúsculo que, na comparação, torna-se menor que esta caixa de aço sem janelas, mas que parece nunca ter respirado um ar tão puro e fresco, entre a fumaça dos mentolados e os clássicos em preto e branco que adora rever na madrugada. Precisa dar um abraço e um beijo na bruxa. Precisa avisar que o ordenado das ascensoristas vai aumentar. Precisa levá-la para tomar um café no gringo da esquina, o melhor café da cidade, o gringo é o sujeito mais boa-praça que há, sempre com uma piada engraçada na ponta da língua.
As portas abrem, o diretor se joga para dentro, mas ela não está.
Sentada na cadeirinha estreita, uma lambisgóia magra, despeitada e nariguda de cabelo louro escorrido. Uma verdadeira barata branca. Pior, com um uniforme mal-ajambrado, desbotado, fechado até o pescoço e solto no corpo. O uniforme de outra prestadora de serviços. O diretor se vê tocado por uma vaga lembrança, um papelucho entre outros em sua enorme mesa, e as palavras “segurança ... limpeza ... ascensoristas ... prestadora ... concorrência ... menor preço”.
Despedira a cigana.
Pede para descer no terceiro, salta as escadas correndo, o café se tornou indispensável. Precisa chegar logo e encontrar o gringo.
Tem uma piada nova ótima para contar.

* * *


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