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sexta-feira, 22 de julho de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 1 - Alexandre Boeira

Hoje o De Quem São Estes Contos? inaugura uma nova seção, uma espécie de folhetim, possivelmente hebdomadário, a cargo de Alexandre Boeira. Eventualmente será solicitada a participação dos leitores para o desfecho de alguma das histórias. Boas leituras!



Doutor Edmílson não tinha nada de original. Era cópia mesmo. Por ironia deliberada, sua concepção nasceu de Mort. Sim, por livre inspiração em Ed Mort, Carlos Felipe de Araújo Silva tornou-se Doutor Edmílson, advogado especializado em divórcios, mais que especializado, pois apenas defendia homens.

Quando perguntado, justificava:

- Preciso entender meus clientes.

Tornou-se advogado porque não se encontram mais hoje em dia bons cursos de detetive particular por correspondência. Aliás, como ele mesmo dizia, hoje em dia não existe mais sequer correspondência.

- A única coisa que vem pelo correio são as contas e as multas de trânsito.

Agora, faculdade de direito, essa sim, tem em qualquer lugar. Fez o curso à distância. Não porque não queria comparecer as aulas, mas porque lhe agradava saber que poderia conseguir um diploma, mesmo mantendo distância da faculdade. Questão de princípios.

Doutor Edmílson instalou seu escritório em um tradicional prédio do centro histórico. Edifício antigo, elevador com ascensorista, manivela dourada, porta pantográfica e tudo. Coisa de respeito.

Costumava ir pela manhã ao escritório e a tarde reservava para o Foro. Era metódico. Se algum juiz marcasse audiência no período da manhã, substabelecia sem reservas ou renunciava à causa.

Seu escritório é bem decorado, sala, ante-sala, sala de reuniões, café, copiadora e computadores, vários computadores. As máquinas emprestam um ar de seriedade ao ambiente, além disso, confessava:

- São mais baratos que arranjos ou enfeites de mesa. Ocupam o mesmo espaço e ainda possuem alguma utilidade.

Os negócios iam bem. Advogado especializado em homens era coisa rara. Ele tinha encontrado seu nicho de mercado. Tudo bem que a causa feminina é mais simpática, tem até lei especial defendendo “o outro lado” como costumava chamar. Claro, era mais fácil vencer defendendo o lado feminino, mas a concorrência desleal e a ganância desenfreada o afastaram. Aos colegas que se gabavam de fazer fortunas defendendo as mulheres largadas em rumorosos divórcios ele simplesmente dizia:

- Não te esqueças que é o meu cliente que também paga os teus honorários.

Tinha também uma secretária, Dona Nívea. Embora trabalhasse apenas a visão masculina da separação e do divórcio, sua secretária era mulher. Dona Nívea tinha idade indefinida, mas ainda dava um caldo, e, às vezes, dava mesmo. Além disso, ninguém tinha um repertório de palavrões tão grande quanto o da Dona Nívea. E ela sabia quando usar, isso valoriza uma secretária. O advogado não pode mandar o cliente chato se fuder, mas a Dona Nívea podia, e mandava.

Não era homem de muitos vícios. Fumava um pouco, bebia mais um tanto. Maconha só na juventude, mas não tinha gostado. Tinha algo, porém, que arranhava um pouco a ética, mesmo sua ética particular. Doutor Edmílson se apegava, se apegava muito. Nutria carinho, compaixão, talvez até amor, mas principalmente, tesão. Edmílson tinha tesão pelas ex-mulheres de seus clientes. Cada injustiça que eles as acusavam, cada insensibilidade delas, as traições, os desprezos, tudo fazia ele ter vontade de conhecer aquela megera. Não raro, conhecia. Depois da audiência, a pretexto de entabular um acordo, marcava um café com a advogada da parte contrária. Normalmente era uma advogada.

Doutor Edmílson sabia. A relação entre o advogado e o cliente homem é muito diferente da relação entra a advogada e a sua cliente. Não raro elas ficam amigas, discutem detalhes da causa, expõem estratégias e, sempre, mas sempre, enquanto o homem quer distância, a mulher quer acompanhar cada detalhe do andamento do processo. Assim, normalmente compareciam ao café o Doutor Edmílson, a advogada e a mulher de seu cliente. E em tais ocasiões, Edmílson era o homem perfeito. Culto, compreensivo, encantador. Poucos acordos eram fechados, mas muitas ex-mulheres saíam de lá sabendo que seriam comidas pelo advogado do ex-marido. E eram. E gostavam.

Edmílson, a sua maneira, era também bastante organizado. Tinha anotada a história de todos os clientes. Isso mesmo, a história. Nada de datas, documentos, prazos, cópias de petições ou outros. Isso era coisa para guardar na cabeça. Na memória do computador de sua mesa, protegidas pela senha COLORADO2006, estavam suas impressões em prosa sobre cada homem que defendeu nos tribunais. A narrativa de suas histórias de vida, do fracasso do casamento, suas amantes e alguns comentários do próprio Edmílson. Tudo parecia sem importância para a causa, mas não para o inspetor Brasil. Afinal de contas, o homem estava morto, sujando o tapete da sala de reuniões com o sangue que jorrara pelo buraco bem no centro da testa.

Brasil não era de se impressionar, 18 anos de polícia fazem isso, mas gostou do tiro. Buraco pequeno, talvez de 22, no máximo uma .32, provavelmente Smith & Wesson, pois não transfixou nem causou maiores danos externos. Circunferência perfeita, nada de elipse. A trajetória do tiro deve ter sido reta mesmo, olhando nos olhos. As bordas discretamente sombreadas, uma leve tatuagem. Sem a marca Pupper-Wertgaartner e sem chamuscamento. A distância do tiro era maior que a do braço do doutor ali deitado. Suicídio estava descartado.

Edmílson tinha dívidas. Qualquer um tem, mas eram dívidas escorreitas, institucionais, com SPC e tudo. O gerente do Banrisul, a Mastercard do Brasil ou a direção da Vivo não eram suspeitos. Os suspeitos eram os clientes. Brasil não tinha saída, precisava ler toda aquela tralha.


                         Antes de sair, levando consigo a pen-drive com todos os arquivos do computador do Doutor Edmílson, deu uma última olhada no corpo. Já vira de tudo, mas ainda assim achou estranho. Tinha de perguntar para a Lucinha do DML. Morto fica de pau duro?

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