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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CONTO: SIMULACRO - Carol Teixeira

The simulacrum is never that which conceals the truth. It is the truth which conceals that there is none. The simulacrum is true.
(Eclesiastes)

Ele a olhava na enorme foto na parede enquanto a comia de quatro. Sentia arrepios no corpo todo pelo fato de saber que aquela mulher tão provocante e absurdamente sensual da foto era a mesma dona do corpo que ele possuía com tanta voracidade. A perfeição da imagem estática, do simulacro em contraste com a visceralidade do corpo com seus cheiros, texturas e movimentos - como numa espécie embriagadora de dualidade platônica. A realidade e fantasia se encontrando num arrebatamento que transcendia os padrões normais das sensações num ato sexual. Ele oscilava entre a foto e o corpo - e quando focava no corpo sentia uma espécie de angústia por sabê-lo, em espírito, impenetrável, por mais que o penetrasse repetidamente. A impossibilidade real da posse em contraste com o desejo da fusão.

Talvez ele não soubesse por que, mas olhá-la na foto parecia, de certa forma, menos ameaçador.

Ela era a única mulher sobre a qual ele continuava fantasiando mesmo depois de conquistar. Pensou em dizer isso para ela ali, no ato, mas não disse. Ela por sua vez quis dizer (e disse) que ele era o único homem que a fazia gozar naquela posição, mas no meio da frase foi interrompida pelo próprio gozo levando ele ao mesmo ápice. Entre palavras ditas e não ditas, ficaram ali, grudados, sentindo circular uma energia que de tão intensa parecia tangível. Ele a beijou delicada e repetidamente no pescoço, abraçou forte aquele corpo que, de tão magro, dava medo de quebrar e sentiu uma vontade (que conteve) de chorar.

Ela, hiperativa que era, levantou libertando-se daquela situação tranqüila pós-sexo e foi para a sala, logo o chamando para tomar a garrafa de vinho que ela abria. Ele chegou e ela estava nua, jogada no sofá. O gato caminhava pela beira da janela escancarada do décimo andar – o que causaria arrepios em qualquer um, mas não nela, tão alheia aos abismos da vida. Nem ela nem seu gato tinham medo de cair. Ele, que tinha, correu para fechar a janela e só depois sentou no sofá para tomar vinho. “Será que as pessoas desses prédios conseguem nos ver aqui, sem roupa?”, ele perguntou. “Espero que sim”, disse ela rindo de um jeito tão lindo e livre que fez ele querer congelar aquela cena.
A luz começou a falhar até apagar totalmente. Era a terceira vez no mês que faltava luz, por isso ela nem hesitou: pegou fósforo na gaveta ao lado do sofá e acendeu as velas de enfeite na mesinha.

Silêncio. Súbito e longo silêncio.

No escuro, ele foi andando pela sala à procura do violão. Vinho, escuridão e música: não seria tão ruim assim já que ambos estavam de acordo que dormir não era uma possibilidade. Sob a luz das velas ela conseguia enxergar os olhos úmidos num quase choro, um quase transbordar. Quase, sempre quase. Ela observava aquele olhar tão desprotegido por trás de tanta segurança e pensava no quanto queria entrar naquele mundinho tão complexo e turvo. Havia dor ali, sim, mas havia também amor. Dor e amor - como de praxe, sempre juntos. Enquanto ele tocava uma música que havia composto que sempre provocava nela uma incontrolável vontade de chorar (e ela chorava, sem quases), ela pensava no quanto o amava, no quanto o queria sem meias palavras, meios pensamentos, meios amores. Logo ela, tão volúvel, tão insustentável-leveza-do-ser, estava ali, rendida. Não sabia se sentia vergonha ou deleite por essa rendição.

I could drink a case of you and still be on my feet. Não era essa a música que ele tocava, mas era a letra que vinha em sua cabeça, roubada de um momento passado no qual tais palavras não fazia o mínimo sentido. Mas ali, naquela escuridão tão plena, tudo fazia sentido: he could drink a case of her and still be on his feet. Tudo o que ele queria era conseguir expressar, botar para fora tudo aquilo trancado dentro dele. O som do violão ecoava pela sala em contraste com o silêncio da rua e ele reparou que sempre era assim quando faltava luz: parecia que também faltava som. Palavras também? Ou seria apenas impressão dele naquele momento, sentindo-se como numa cena pausada de um filme? Porque havia a inevitável imobilidade. Sem luz não se pode ver uma televisão, ler um livro, fazer uma comida, ver os emails, não se pode fazer nada por minutos ou talvez por horas. Sem luz não há dispersão, subterfúgios. Então as pessoas param e são obrigadas a conviver com elas mesmas. Ele, com sua vida implícita, ela com sua vida explícita, não tinham para onde fugir.

“Sabe o que eu acho?”, ela falou, servindo-se de mais vinho. Ele olhou, fazendo cara de “quê?”. “Que a gente tinha que parar com esses eufemismos, tipo ´sou louca por ti, gosto tanto de ti´…entende?” Ele parou de tocar, suspirou, também serviu-se de mais vinho e embora quisesse dizer muito mais, só conseguiu dizer “entendo”, sem corresponder à óbvia vontade dela de uma maior expressão. O que fez com que ela questionasse em pensamento por que o amor era tão fácil para alguns e tão complicado para outros. Estavam juntos há mais de um mês e só o que se trocavam eram covardes sinônimos para um “eu te amo”.

Passaram-se duas horas na imobilidade da falta de luz, entre o violão, algumas palavras faladas ou caladas e o silêncio. A luz do dia amanhecendo começava a entrar pela janela semi-aberta, os barulhos começavam a surgir. Era uma terça-feira. Nunca tinha visto o dia amanhecer numa terça-feira, ela disse. Vamos descer então?, ele sugeriu, descer para caminhar, ver como é o dia amanhecendo numa terça. Pegaram mais uma garrafa de vinho e desceram.

O dia amanhecia rosa, mais parecia um entardecer. Olhou para a rua a sua frente. Uma grande avenida para atravessar, daquelas que se atravessa em duas etapas. Não tinham rumo definido, apenas sentiam que tinham que seguir. Pararam no meio-fio, esperando o sinal fechar e ela olhou fundo nos olhos dele, como se quisesse arrancar algo ali de dentro :

“Vamos combinar uma coisa? Quando a gente chegar na metade da rua, ali no canteiro, você me pede em namoro.”

Ele riu de leve com o comentário lúdico, quase infantil. E ela completou:

“E quando chegar do outro lado da rua, você pode acabar comigo se quiser.”

Carros passavam correndo, barulhentos e alucinados. A cidade acordava repleta de possibilidades. A vida iminente. A morte iminente. Eles começaram a andar em silêncio, a respiração sentida passo a passo. Inhale. Exale. A sensação estranha de não-pertencimento ao que havia ao redor, como num mundo paralelo - uma vida interna que de tão sentida vira externa. Ao chegar no canteiro, ele pegou a mão dela e disse: “Quer namorar comigo?”. Disse isso com seriedade, com densidade até. “Sim”, ela respondeu com um quase sorriso.

Eles cruzaram até o outro lado de mãos dadas. O dia cada vez mais claro, a rua, em poucos segundos, parecendo mais cheia e mais distante. Um lixeiro varria o chão em frente, uma velha passava com um cachorro: cenas da realidade que simplesmente destoavam do isolamento do amor que ali acontecia e, por isso, nem chegavam a ser percebidas por eles.
“Pronto. Se quiser pode acabar comigo agora.”, disse ela, ao pisar na calçada. E ao dizer isso, viu nos olhos sérios dele o quase choro de novo - que naquele momento, se completava pela primeira vez. A lágrima em potência se fazendo em ato.O amor em potência se fazendo em ato, enfim. E entre lágrimas plenas e sentimentos plenos, ele olhou para ela, talvez pela primeira vez sem angústia ou medo – ela, que ali não era imagem estática ou alguma espécie de simulacro – e falou, enquanto caminhavam rumo a algum lugar:

“Nunca. Nunca vou acabar”.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

CONTO: O OUTRO - Jorge Luis Borges

O fato ocorreu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, o será talvez para mim. Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as noites desveladas que o seguiram. Isto não significa que seu relato possa comover a um terceiro. Seriam dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros à minha direita havia um alto edifício cujo nome nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. Eu havia dormido bem; minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar aos alunos. Não havia ninguém à vista. Senti, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivido aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se havia sentado. Teria preferido estar só, mas não quis levantar em seguida, para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo crioulo de La Tapera de Elias Regules. O estilo me reconduziu a um pátio lá desaparecido e à memória de Álvaro Mellián Lafinur, morto há muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da décima do princípio. A voz não era a de Álvaro, mas queria parecer-se com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.Aproximei-me e disse-lhe:
- O senhor é oriental ou argentino?
- Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra - foi a resposta.
Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe:
- No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?
Respondeu-me que sim.- Neste caso - disse-lhe resolutamente
- o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.

- Não - respondeu-me com a minha própria voz um pouco distante. Ao fim de um tempo insistiu:

- Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. 0 estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.Respondi:- Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber. Lá em casa há uma cuia de prata com um pé de serpentes, que nosso bisavô trouxe do Peru. Há também uma bacia de prata que pendia do arção. No armário do teu quarto, há duas filas de livros. Os três volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com gravações em aço e notas em corpo menor entre os capítulos, o dicionário latino de Quicherat, a Germania de Tácito em latim e na versão de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tábuas de Sangue de Rivera Indarte, o Sartor Resartus de Carlyle, uma biografia de Amiel e, escondido atrás dos demais, um livro em brochura sobre os costumes sexuais dos povos balcânicos. Não esqueci tampouco um entardecer em um primeiro andar da praça Dubourg.- Dufour - corrigiu.
- Está bem. Dufour. Te basta, tudo isto?
- Não - respondeu.
- Essas provas não provam nada. Se eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente vão.
A objeção era justa.
Respondi:
- Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com os olhos e respirarmos.
- E se o sonho durasse? - disse com ansiedade.
Para tranqüilizá-lo e me tranqüilizar, fingi uma serenidade que certamente eu não sentia.
Disse-lhe:

- Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera?
Assentiu sem uma palavra. Prossegui, um pouco perdido:
- A mãe está saudável e bem, em sua casa de Charcas y Maipú, em Buenos Aires, mas o pai morreu há uns trinta anos. Morreu do coração. Uma hemiplegia o liquidou; a mão esquerda posta sobre a mão direita era como a mão de uma criança posta sobre a mão de um gigante. Morreu com impaciência de morrer, mas sem uma queixa. Nossa avó havia morrido na mesma casa. Alguns dias antes do fim chamou-nos a todos e disse-nos: '"Sou uma mulher muito velha que está morrendo muito devagar. Que ninguém se perturbe por uma coisa tão comum e corrente". Norah, tua irmã, se casou e tem dois filhos. A propósito, em casa como estão?
- Bem. O pai sempre com seus gracejos contra a fé. Ontem à noite disse que Jesus era como os gaúchos que não querem se comprometer e que, por isto, pregava através de parábolas.

Vacilou e disse:
- E o senhor? - Não sei o número de livros que escreverás, mas sei que são demasiados. Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Darás aulas como teu pai e como tantos outros de nosso sangue.
Agradou-me que nada perguntasse sobre o fracasso ou êxito dos livros.
Mudei de tom e prossegui:

- No que se refere à História... Houve outra guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, ao redor de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou, como antes Entre Rios. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América, travada pela superstição da democracia, não se resolve a ser um império. Cada dia que passa nosso país está mais provinciano, Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o ensino do latim fosse substituído pelo do guarani. Notei que mal me prestava atenção. O medo elementar do impossível, e no entanto certo, o aterrorizava. Eu, que não fui pai, senti por esse pobre moço, mais íntimo que um filho da minha carne, uma onda de amor. Vi que apertava entre as mãos um livro.
Perguntei-lhe o que era.

- Os possessos ou, segundo creio, Os Demônios, de Feodor Dostoiewski - me replicou não sem vaidade.
- Já o esqueci. Que tal é?
Nem bem o disse, senti que a pergunta era uma blasfêmia.

- O mestre russo - sentenciou - penetrou mais que ninguém nos labirintos da alma eslava. Essa tentativa retórica me pareceu uma prova de que se havia acalmado. Perguntei-lhe que outros volumes do mestre havia percorrido. Enumerou dois ou três, entre eles O Sósia. Perguntei-lhe se, ao lê-los, distinguia bem as personagens, como no caso de Joseph Conrad, e se pensava prosseguir o exame da obra completa.- A verdade é que não - respondeu-me com uma certa surpresa. Perguntei-lhe o que estava escrevendo e disse que preparava um livro de versos que se chamaria Os hinos vermelhos. Também havia pensado em Os ritmos vermelhos.- Por que não? - disse-lhe.
- Podes alegar bons antecedentes. O verso azul de Rubén Darío e a canção gris de Verlaine.
Sem me fazer caso, esclareceu que seu livro contaria a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas à sua época. Fiquei pensando e perguntei-lhe se verdadeiramente se sentia irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os escafandristas, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos, etc. Disse-me que seu livro se referia à grande massa dos oprimidos e dos párias.

- Tua massa de oprimidos e párias - respondi - não é mais que uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. O homem de ontem não é o homem de hoje, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova. Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois. Quase não me escutava. De repente, disse:- Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, lhe disse que ele também era Borges? Não havia pensado nessa dificuldade. Respondi, sem convicção:- Talvez o fato tenha sido tão estranho que eu tenha tratado de esquecê-lo. Aventurou uma tímida pergunta:
- Como anda sua memória?
Compreendi que, para um moço que não havia feito vinte anos, um homem de mais de setenta era quase um morto.
Respondi:

- Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe.
Nossa conversação já havia durado demais para ser a de um sonho.
Uma súbita idéia me ocorreu.
- Eu posso te provar imediatamente - disse-lhe - que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre. Lentamente entoei o famoso verso: L'hydre - univers tordant son corps ecaillé d'astres.
Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-o em voz baixa saboreando cada resplandescente palavra.- É verdade - balbuciou - Eu não poderei nunca escrever um verso como este. Antes, ele havia repetido com fervor, agora recordo, aquela breve peça em que Walt Whitman rememora uma noite compartilhada diante do mar em que foi realmente feliz.
- Se Whitman a cantou - observei - é porque a desejava e não aconteceu. O poema ganha se não adivinhamos que é a manifestação de um anelo. Não a história de um fato.
Ficou a me olhar.- O senhor não o conhece - exclamou.- Whitman é incapaz de mentir. Meio século não passa em vão. Sob nossa conversação de pessoas de leitura miscelânea e de gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podíamos nos enganar, o que torna o diálogo difícil. Cada um de nós dois era o arremedo caricaturesco do outro. A situação era anormal demais para durar muito mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil, porque seu inevitável destino era ser o que sou. De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali está a flor. Ocorreu-me artifício semelhante.
- Ouve - disse-lhe -, tens algum dinheiro?

- Sim - me replicou. - Tenho uns vinte francos. Esta noite convidei Simón Jichlinski ao Crocodile.
- Diz a Simón que exercerá a medicina em Carouge e que fará muito bem... agora, me dá uma de tua moedas. Tirou três escudos de poeta e umas peças menores. Sem compreender, me ofereceu um dos primeiros.
Eu lhe estendi uma dessas imprudentes notas americanas que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho.
Examinou-a com avidez.

- Não pode ser - gritou. - Leva a data de mil novecentos e sessenta e quatro. (Meses depois, alguém me disse que as notas de banco não levam data.)
- Tudo isto é um milagre - conseguiu dizer - e o milagroso dá medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados. Não mudamos nada, pensei. Sempre as referências livrescas. Fez a nota em pedaços e guardou a moeda. Eu resolvi lançá-la ao rio. O arco do escudo de prata perdendo-se no rio de prata teria conferido à minha história uma imagem vivida, mas a sorte não quis assim. Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus a ele que nos víssemos no dia seguinte, nesse mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares.
Assentiu logo e me disse, sem olhar o relógio, que já era tarde. Os dois mentíamos e cada qual sabia que seu interlocutor estava mentindo. Disse-lhe que viriam me buscar.- Buscá-lo? - interrogou.
- Sim. Quando alcançares a minha idade, terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão. Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido. Meditei muito sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pude me esquecer.
Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta.
O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

CONTO: CARTA A UMA SENHORITA EM PARIS - Júlio Cortázar

ANDRÉE. EU NÃO QUERIA VIVER EM SEU APARTAMENTO da Calle Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, mas porque me desagrada entrar em uma ordem fechada, construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o adejar de um cisne, o jogo de violino e viola no quarteto de Rará. Para mim é duro entrar em um ambiente onde alguém que vive confortavelmente dispôs tudo como uma reiteração de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro em francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste exato lugar da mesinha, o cinzeiro de cristal que se parece com uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia do amigo morto, um ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar... Ah, querida Andrée, que difícil opor-se, embora aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua agradável residência. Como é condenável pegar uma tacinha de metal e pô-la no outro extremo da mesa, pô-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários de inglês e é deste lado, ao alcance da mão, que deverão estar. Mexer nessa tacinha equivale a pôr um horrível e inesperado vermelho em meio a uma modulação de Ozenfant, como se de repente as cordas de todos os contrabaixos rebentassem ao mesmo tempo, com o mesmo espantoso chicotaço, no instante mais suave de uma sinfonia de Mozart. Mexer nessa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de um objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua distante moradora. E eu não posso aproximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de luz de um lampião, abrir a tampa da caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais. Você sabe por que vim a sua casa, a sua tranqüila sala festejada de sol.Tudo parece tão natural, como sempre, que não se sabe a verdade. Você foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da Calle Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que setembro traga-a de novo a Buenos Aires e me atire a alguma casa onde talvez... Mas não lhe escrevo por isso, envio esta carta por causa dos coelhinhos, parece-me justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove. Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que a quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das maletas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria instalar-me, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não acredite que por deslealdade, mas naturalmente a gente não vai ficar explicando a todos que, de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isso sempre me tem sucedido estando só, escondia o fato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure. Andrée, não me censure. De quando em quando me acontece vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que a gente tenha de se envergonhar e estar isolado e andar se calando.Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e inteiramente um coelhinho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penugem com uma carícia dos dedos, o coelhinho parece satisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho na minha pele, mexendo-o com essa trituração silenciosa e cosquenta do focinho de um coelhinho contra a pele de uma mão. Procura comer, e então eu (falo de quando isto ocorria em minha casa de campo) o levo comigo à varanda e o ponho no grande vaso onde cresce o trevo que plantei com esse fim. O coelhinho levanta suas orelhas, envolve o trevo novo com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, continuar por algum tempo uma vida não diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas. Entre o primeiro e o segundo andar. Andrée, como um aviso do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da mesma surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, por cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido inteiramente o problema dos coelhinhos.Plantava trevo na varanda de minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro... então dava o coelho já crescido à sra. de Molina, que pensava ser um hobby meu e se calava. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e apropriado, eu esperava sem preocupação a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo fechava-me a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquela hora a vida e os costumes do anterior. Os costumes. Andrée, são formas concretas do ritmo, são a cota do ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método. Você quererá saber por que todo esse trabalho, por que todo esse trevo e a sra. de Molina. Teria sido preferível matar em seguida o coelhinho e... Ah, você teria de vomitar tão somente um, pegá-lo com dois dedos e colocá-lo na mão aberta, ainda aderido a você pelo ato mesmo, pela aura inefável de sua proximidade apenas rompida, Um mêsdistancia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens,diferença absoluta. Andrée, um mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o minuto inicial, quando a mecha morna e bulidora encobre uma presença imutável... Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão da gente que a gente mesmo... depois tão não a gente, tãoi solado e distante em seu raso mundo branco tamanho mapa. Decidi, contudo, matar o coelhinho mal nascesse. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro — talvez, com sorte, três — colheradas de álcool no focinho, (Você sabe que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne então sabe melhor, dizem, embora eu... Três ou quatro colheradas de álcool, logo o banheiro ou um pacote somando-se ao lixo).Ao passar o terceiro andar o coelhinho se mexia em minha mão aberta. Sara esperava em cima, para ajudar-me a entrar com as malas... Como explicar-lhe que um capricho, uma lojinha de animais? Envolvi o coelhinho em meu lenço, coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando o sobretudo solto para não espremê-lo. Mal se mexia. Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um click final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno. Sara não viu nada, fascinava-a muito o duro problema de ajustar seu sentido de ordem a minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência diante de suas demoradas explicações, onde abunda a expressão "por exemplo". Tão logo pude, me fechei no banheiro; matá-lo agora. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e acho que mais lindo do que os outros. Não me olhava, somente bulia e estava contente, o que era o mais horrível modo de me olhar. Encerrei-o no pequeno armário vazio e me voltei para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, não culpado, não ensaboando as mãos para tirar delas uma última convulsão.Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.Você deve gostar do belo armário do seu quarto, com a grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Agora guardo-os ali. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e não desconfia de nada por causa da minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e minhas noites num só golpe de gatilho e vai me queimando por dentro e endurecendo como aquela estrela-do-mar que você pôs sobre a banheira e que a cada banho parece encher o corpo da gente de sal e açoites de sol e grandes rumores de profundidade.De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna somente para eles, lá dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dúvida sua honradez e olha-me desconfiada, noto todas as manhãs que está para me dizer algo, mas por fim se cala, e eu fico tão contente... (Quando arruma o quarto, das nove às dez, faço ruído na sala, ponho um disco de Benny Carter que toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e talvez esteja, porque para os coelhinhos agora é noite e hora de descanso). Seu dia principia nessa hora que vem depois da janta, quando Sara leva a bandeja com um miúdo tilintar de pinças de açúcar, deseja-me boa-noite —sim, deseja. Andrée, o mais triste é que me deseja boa-noite — e fecha-se em seu quarto e imediatamente estou só, só com o armário condenado, só com meu dever e minha tristeza. Deixo-os sair, lançarem-se ágeis pela sala, cheirando vivamente o trevo que meus bolsos ocultavam e agora fazem no tapete efêmeras rendas que eles alteram, removem, consomem num instante. Comem bem, calados e corretos, até aquele instante nada tenho a dizer, somente os olho do sofá, com um livro inútil na mão — eu que queria ler todos os seus Giraudoux. Andrée, e a história argentina de Lopez que você tem na prateleira mais baixa —; e comem o trevo. São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as  lâmpadas da sala, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam pelo tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas movimentam-se como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos — um pouco o sonho de todo deus. Andrée, o sonho jamais cumprido dos deuses —, não assim,insinuando-se atrás do retrato de Miguel de Unamuno, em torno do grande jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de Lopez. Não sei como resisto. Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não é culpa minha se de quando em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro — não é nominalismo, não é magia, apenas que as coisas não podem mudar assim de pronto, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando você esperava a bofetada direita...Assim. Andrée, ou de outro modo, mas sempre assim.Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas escrevo-lhe na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror.Andrée! Agora me chamam ao telefone, são os amigos que se inquietam com minhas noites recolhidas, é Luis que me convida a caminhar ou Jorge que reservou entrada para um concerto. Quase não me atrevo a dizer-lhes que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando volto e subo de elevador — aquela passagem,entre o primeiro e o segundo andar — renovo noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.Faço o que posso para que não destrocem suas coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará escondidos para que Sara não note. Você gostava muito de seu lampião com o ventre de porcelana cheio de mariposas e cavaleiros antigos? O trincado mal se percebe, trabalhei toda a noite com um cimento especial que me venderam em uma casa inglesa— você sabe que as casas inglesas têm os melhores cimentos — e agora fico ao lado dele para que nenhum o alcance outra vez com as patas (é quase belover como gostam de se pôr em pé, lembrança do humano distante, talvez imitação de seu deus deambulando e os olhando carrancudo; além disso você terá percebido — em sua infância, talvez — que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as patinhas apoiadas e muito quieto horas e horas). Às cinco da manhã (dormi um pouco, estirado no sofá verde e despertando a cada corrida aveludada, a cada tilintar) coloco-os no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem, embora às vezes eu tenha notado nela algum assombro contido, um ficar olhando um objeto, uma leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de perguntar-me algo, mas eu assobiando as variações sinfônicas de Franck, de maneira que nada. Para que contar-lhe. Andrée, as minúcias desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho entredormido levantando cabos de trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa. Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que já estará se perguntando se... para que continuar tudo isto, para que continuar esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas. Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não virão mais. Faz 15 dias segurei na palma da mão um último coelhinho, depois nada, somente os dez comigo, sua diurna noite e crescendo, agora feios e nascendo- lhes o pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de necessidades e caprichos,saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, verdade, aquele rapaz que olha cegamente?) ou se perdendo no living onde seus movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e apareça horripilada, talvez em camisola — porque Sara deve ser assim, de camisola —, e então... Somente dez, pense você nessa pequena alegria que tenho, afinal de contas, na crescente calma com que dou volta aos duros céus do primeiro e do segundo andar. Interrompi esta carta porque devia participar de um trabalho de comissões. Continuo-a aqui em sua casa. Andrée, sob um mudo e grisalho amanhecer, É de fato o dia seguinte. Andrée? Um pedaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une meu escrito de ontem ao meu escrito de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo terminou, onde você vê a ponte aberta ouço eu quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim estelado do papel, este lado da minha carta não continua a calma com que eu vinha escrevendo, quando a deixei para participar de um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem 11 coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não agora — no elevador, logo, ou ao entrar; já não importa onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam. Agora chega, escrevi isto porque me interessa provar-lhe que não fui tão culpado na destruição irrecuperável de sua casa. Deixarei esta carta esperando-a, seria sórdido que o correio a entregasse em alguma clara manhã de Paris. À noite passada repus os livros da segunda estante; já os alcançavam, pondo-se de pé ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes — não por fome, têm todo o trevo que lhes compro e armazeno nas gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os forros das cadeiras, a moldura do autoretrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram dando voltas sob o lampião, em círculo e como me adorando, e logo gritavam, gritavam como eu não acredito que gritem os coelhos.Quis em vão tirar os pelos que estragam o tapete, arranjar a moldura da tela roída, fechá-los de novo no armário. O dia chega, talvez Sara se levante agora. É quase estranho que Sara não me importe. E quase estranho que não me importe vê-los correr em busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem reparados com o cimento que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para evitar-lhe um desgosto... Quanto a mim, do dez ao 11 há como um vazio insuperável.Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Mas não com 11, porque dizer 11 é certamente dizer 12. Andrée, 12 que será 13. Então está o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tantos outros. Está esta sacada sobre Suipacha cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não acho que seja difícil juntar 11 coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os notem, atarefados com o outro corpo que convém levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 4 - Alexandre Boeira

Brasil acordou sobressaltado. Era assim que acordava. Quando despertava de seu estado de sono letárgico, o corpo do inspetor reiniciava todas suas tarefas de vigília em um único estalo. Não tinha graduação, ou estava em sono profundo, quase morto, ou parecia ligado na tomada. A transição entre os dois estágios era algo parecido com o paciente ao ser desfibrilado na série House, enlatado que tanto adora. Clear ! Clear!
O cérebro não. Fazia sim parte daquela carcaça, mas negava-se a participar de tamanha reação automatizada. Prezava muito o status de órgão superior para ser sacudido assim nesse toque de alvorada esquizofrênico. Por conta disso, era bastante comum Brasil surpreender-se de pé, ao lado da cama, sem saber como tinha chegado até ali. Nessa manhã, quando o cérebro ultimou seu reinicializar completo, Brasil encontrou-se nu, defronte ao espelho do quarto e coçando o saco. Esse movimento sim, era automático.
Não gostou do que viu e virou-se para a cama, procurando suas roupas. Encontrou-as no chão, reviradas e misturadas às roupas de Martha, que dormia angelicalmente na sua parcela do minifúndio de molas comprado em doze vezes nas Casas Bahia.
Colocou apenas as cuecas e o relógio de pulso. Deixou o quarto e foi para a cozinha procurar algo para o café. Abriu a geladeira e saboreou a primeira cerveja do dia. Ao receber alimento, seu cérebro retribuiu, abriu o compartimento da memória recente e lhe ofereceu um resumo dos fatos da noite anterior, desde a 14ª DP , onde leu a estranha história cliente do falecido Edmílson, o tal do Guinther, até agora, em sua cozinha procurando um queijo para colocar nos ovos mexidos que preparava. 
No intervalo disso tudo, depois de despachar o Togo da repartição, havia terminado o relatório da investigação sobre a apreensão dos quarenta e cinco quilos de maconha, localizados no vão aberto na estrutura da alça de acesso do aeroporto à Br-116, sentido interior-capital:
Versa o presente sobre Inquérito Policial 772-14DP-2011, instaurado a partir do Auto de Prisão em Flagrante 36-14DP-2011, lavrado quando do cumprimento do mandado de busca e apreensão blá, blá, blá; blá, blá, blá; blá, blá, blá.
Fez o que a Delegada mandou, mas também atendeu o que o Pernoca pediu.
Pernoca deu todo o serviço. Disse que operários da arena do porto-alegrense, todos nordestinos trazidos ao sul com promessas de salário em dia, mantimentos semanais e alojamento limpo, estavam se revezando em suas folgas mensais e, viajando de ônibus até Cabrobró, no sertão pernambucano. Afirmou com conhecimento que ao retornarem traziam de lá generosos e bem prensados tijolos da famosa maconha daquela região. Com tal transporte formiguinha pretendiam compensar as promessas descumpridas pelo patrão e finalmente juntar o dinheirinho prometido mandar à família. A diferença entre o preço praticado lá no nordeste produtor e o valor pago pelos consumidores da metrópole sulista valia o risco, principalmente quando o frete era de graça, uma vez que as passagens mensais eram a única promessa que a empreiteira cumpria religiosamente. Do contrário, era motim certo nos alojamentos.
Pernoca deu os nomes, o local onde estavam armazenando a droga e disse até o porquê da sua delação. O porquê era o Cupim.
Pernoca já reinava entre os travecos da Vila Areia quando passou a se chamar assim. Foi quando um cliente inebriado pelo álcool  disse que a biba parecia uma atriz de cinema, a mulher de um traficante, aquela das pernocas roliças. Era filme brasileiro, mas filme bom, e pernoca gostou e adotou o apelido. Foi quando já era pernoca a mais de ano que tudo ali começou a mudar. A vila deixou de ser Vila, os assaltos a pedradas na BR-290 foram o pretexto. Toda aquela área estava valorizando, era preciso mandar os pobres para mais longe. Limpa a área, definida a destinação, começaram a chegar os operários, entre ele o Cupim. Pernoca gostou do Cupim e o Cupim gostou do Pernoca. Como o auxiliar de pedreiro escondia dos colegas a sua preferência, passaram a se encontrar no privê do Pernoca, conquistado a marretadas nos tijolos de cimento que, uma vez retirados na quantidade suficiente para dar espaço a uma porta, criaram o ambiente sob a pista de rolamento da alça do viaduto.
Tudo ia bem até Pernoca ser expulso dos seus domínios. O negócio de Cabrobró cresceu. Cupim estava nele até o pescoço. Como o alojamento era úmido e perigoso demais para a maconha, Pernoca dançou. Mesmo assim, não traiu seu amor. Entregou todos, mas pediu que Cupim fosse poupado. E foi assim que aconteceu. Cupim, ou melhor, Dorvalino Conceição Arruda, assim como Canhoto, Manecão e Ricardo estava no local, mas sob o olhar incrédulo dos outros foi dispensado, até com cortesia. Seria bem melhor para o Cupim que os demais não fossem soltos tão cedo.
Embora efetivamente pudesse correr algum risco, o que Cupim não sabia é que Pernoca o tinha salvado duas vezes. Salvo de ser preso e salvo de morrer, destino certo para aquele bando de nordestinos aventureiros, assim que confrontassem os verdadeiros operadores do mercado vendendo maconha boa e abaixo do preço.
Relatório pronto, tudo padrão. Só com a participação dos flagrados, sem maiores detalhes, sem investigação, sem nada. No final, o nome da Delegada, Maria S.F. de Hollanda. Ela que assinasse assim mesmo.
Feito isso, Brasil foi até o calabouço, nome da saleta utilizada como xilindró, quando necessário, e também como depósito dos bens e substâncias apreendidas pela 14ª DP. Abriu a grade com as chaves que ficavam no mesmo chaveiro do Focus, pegou as duas mochilas militares, pesadas demais para roupas de pau-de-arara, colocou uma em cada ombro, deixou o relatório na mesa da delegada e foi-se embora.
Colocou as mochilas no porta-malas do carro e pensou consigo mesmo que na manhã seguinte iria direto ao IGP. Melhor não ficar com essa merda no carro por muito tempo. Passou no bar do portuga só para pegar as compras. A Patrícia voltou da mão do bodegueiro para a geladeira ante ao sinal negativo do inspetor. A caneta ficou na orelha dessa vez.
Chegou em silêncio, não era tão tarde, apenas a força do hábito. Encontrou o filho na sala, de pijamas, assistindo desenho na televisão. Ele abriu um sorriso sincero que só as crianças e os ingênuos sabem dar e o abraço que veio a seguir valeu o dia, valeu a semana, valeu o mês. Valeu ter ido pedir desculpas para Martha, sob o olhar de censura da sogra.
Deixou o rancho na mesa, pegou Pedrinho no colo, levou o menino até o quarto, deitou na cama com ele e depois da tradicional brincadeira de cócegas, procurou acalmá-lo, leu uma ou duas historinhas do livro predileto do menino. Dez minutos depois ele já estava dormindo. Levantou, deu um beijo na testa do guri, falou baixinho no ouvido da criança. Dorme bem, meu amor. Papai te ama. Fechou a porta do quarto bem devagar, prolongando ao máximo a operação para olhar o filho dormindo. Como ele era lindo assim.
Pelo barulho do chuveiro, Martha, que já estava lá quando ele chegou, continuava no banho. Entrou no banheiro sem qualquer intenção, mas aquela mulher nua não entendeu assim e retribuiu. Olhou bem para ele, dobrou só um pouco os joelhos, curvou levemente o tronco para frente, empinando as nádegas como só ela sabia fazer, e ofereceu os seios apertados entre os braços. Com o dedo indicador, fez um sinal desavergonhado, chamando Brasil. O mesmo dedo foi à boca que já fazia beicinho logo após ela ter dito.
- Vem me dar banho, no chuveiro pode.
Agora, já de manhã, sentado na mesa da cozinha, tomando cerveja e comendo ovos mexidos, o cérebro fez lembrar a ele que era daí a pequena dor muscular que sentia nas coxas. De pé, no boxe do banheiro, isso cansa mesmo as pernas. O cérebro lembrou também que a coisa não parou por aí. Depois de vestida, Martha foi despida novamente e foram para a cama. Por isso as roupas misturadas, por isso não gostou quando viu no espelho que o pau estava um tanto vermelho.
Olhou para o relógio.
Puta-que-pariu! Sete horas da manhã. Vou me atrasar para deixar o Pedrinho na escolinha. Depois das sete e trinta é preciso entrar pelo portão dos alunos maiores. Entrando por ali, precisaria passar defronte ao escritório da diretora para chegar até a pré-escola. O escritório é uma sala envidraçada, a diretora sempre vê quem passa e Brasil está com dois meses de mensalidades atrasadas.
Correu até o quarto para acordar a mulher.
- Acorda Martha. Já passa das sete. O Pedrinho vai chegar atrasado de novo. Acorda, vai. Arruma ele que eu preciso sair.
- Só tu mesmo Raul Antônio. Não enche o saco e volta pra cama. Vem dormir de novo.
Chamar Brasil pelo nome composto, Raul Antônio, não era formalidade, era convite. A Mulher queria replay. Não seria possível. Hoje não.
- Ta louca mulher? Não posso perder a hora. Se o portão da pré-escola estiver fechado eu volto para a casa e tu vai ficar cuidando do guri o dia todo.
- Nós vamos cuidar dele o dia todo. Nós. Eu e tu. Hoje é sábado, mané. Lembra da promessa? Hoje nós vamos levar o Pedrinho e o filho da Adriana para o Zoológico de Gramado. E tu vai me comprar umas meias naquela loja lá. Vem deitar.
- Puta-que-pariu! Sábado? Como é que eu vou fazer agora?
Brasil tinha planejado dar andamento nas investigações do morto de pau duro. Enquanto pensava que teria de adiar tudo, buscou nos bolsos das calças caídas no chão a pen-drive e o papel onde anotara tudo que tinha achado sobre o Guinther, tanto no Google, quanto no Infoseg. Tinha ainda que falar com a Lucinha. Quando lembrou do último compromisso a ser adiado, gelou. Puta-que-pariu! O que é que eu vou fazer com os quarenta e cinco quilos de maconha no porta-malas?
                         Como único consolo, a fim de não ficar todo o final de semana sem nada fazer do caso que estava investigando, separou o pen-drive. Levaria o notebook do plantão para a Serra e poderia ler mais alguns arquivos de clientes do Dr. Edmílson.

É SÓ IMAGEM! POR M@TIELLO

ÚNICA - Miguel Matiello

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

CONTO: A ARARA VERMELHA - Charles Kiefer


Contrabandista não é bandido, é? Nunca roubei, nunca matei. Tenho ficha limpa, pode examinar. Se eu pudesse, tinha feito uma faculdade, ia ser advogado, andava de terno e gravata, como o senhor. Trabalho com quinquilharia paraguaia, mas não sou traficante. Relógio Jean Vernier, Tissot, Girard Perregaux. Sim, sei dizer o nome direitinho, aprendi com uma dona chique. Trabalho perto dos hotéis de luxo, lá na Paulista, e no Teatro Municipal. Tem gente endinheirada que compra de dúzia. Dão de presente? Revendem? Por encomenda, trago máquina fotográfica, computador de bolso, GPS, mas tem que fazer um adivance, me falta capital pra bancar produto muito caro.

Hoje se negocia qualquer coisa, cocaína, crack, rim, fígado. Já me ofereceram uma boa grana pra ser mula, pra carregar pasta de coca, pedra, papelote. Não topei. Tenho os meus limites, lido com muamba, e só. Dinheiro é bom, faz a gente feliz, mas não compra tudo, minha mãe já dizia.

Fui de ônibus, como sempre, a Foz do Iguaçu. Atravessei a fronteira a pé, sobre a ponte internacional, e voltei com a cota. Fiz a travessia várias vezes, pra que valesse a pena. Deixava a muamba na mala, no hotel, e voltava pra Ciudad del Este.

Numa dessas idas e vindas, encontrei a arara. Não, viva não. Era uma arara empalhada. De longe, parecia que ela ia levantar vôo, tinha o olho brilhante, as penas do peito eram vermelhas, quase sangue, e das pontas das asas e do rabo, pretas.

Retornei a São Paulo em ônibus de linha intermunicipal, fugindo da fiscalização, por estradas esburacadas, comendo poeira e pastel de rodoviária, e pensando na arara vermelha. Imaginava aquele bicho na floresta, nas árvores, comendo frutinha, longe da maldade dos homens. Até que alguém a caçasse, abrisse a barriga e enchesse tudo de palha seca. É triste. É triste pensar que uma ave linda, que nasceu pra andar pelas estrelas, que tinha visto o mundo de cima, agora olhava a gente com um olho de vidro, sem poder se mexer. Sinto um arrependimento danado de não ter comprado a arara. Só não fechei o negócio porque não teria coragem de passar adiante depois, eu me apego às coisas bonitas, e o dinheiro já andava curto. E agora, sem mercadoria pra revender, encurtou de vez. Eu tinha prometido a mim mesmo que ia trazer o pássaro empalhado na semana seguinte, quando voltasse. Só que eu ainda não sabia que tudo ia acabar numa delegacia de polícia, em Cascavel, no Paraná.

Às vezes, eu fico lembrando a voz da mulher, a beleza do rosto, o cabelo escuro e liso, mas penso, também, na criança que ela trazia no colo, penso muito. E era, mesmo, uma menina, como ela me disse. Assim que olhei pra ela, no ônibus, eu me lembrei da Virgem de Guadalupe. As duas tinham a pele morena e aquele sorriso manso no rosto. Se eu encontrasse a mulher noutro lugar, no Horto Florestal, por exemplo, ou na Praça Quinze, eu ia me apaixonar por ela, mas encontrei na viagem, e deu no que deu. Fui chamado pra ser testemunha do flagrante de prisão e vou levar processo por contrabando. Quando a polícia abriu uma das minhas malas, encontrou a montanha de relógios suíços, fabricados no Paraguai. Perdi tudo e ainda vou me incomodar com o inquérito. A dona da pensão onde eu moro me aconselhou a falar com o senhor.

“Um bom advogado, você vai precisar de um bom advogado”, ela me disse.

Depois de algumas horas, senti vontade de ir ao banheiro. Quando estava me levantando, vi, meio sem querer, que a mulher, essa que se parecia muito com a Virgem, borrifava perfume no rosto da criança. Entrei no reservado e enquanto sacolejava e tentava acertar o vaso, pensei em tudo. Ela embarcou na primeira parada que o ônibus fez, logo que saímos de Foz. Entrou com a criança no braço esquerdo, e com uma sacola plástica dependurada no direito. Tenho certeza, porque ela bateu aquela sacola no meu rosto, quando passou no corredor.

Durante a viagem, ela não saiu nunca do assento. Nem pra almoçar, nem pra jantar, naquelas paradas mais longas que o ônibus sempre faz. Teve uma hora que eu quase perguntei se ela não queria alguma coisa do restaurante, mas desisti quando vi ela tirar um sanduíche da sacola plástica.

Voltei pro meu assento e passei a observar a criatura com mais cuidado. Uma hora depois, se tanto, ela borrifou perfume sobre a criança outra vez. Uma coisa óbvia como que tilintou na minha cabeça: nunca, em nenhum momento, o bebê tinha chorado. Horas e horas de viagem, num caminho esburacado e lento, sob um calor dos diabos, e uma criança de colo ficava o tempo inteiro quieta, adormecida, sem chorar ou mamar?

Entrei na cabine do motorista e comentei que havia algo estranho no assento vinte e um. Um pouco depois, ele parou.

“Estamos com um problema no motor. Peço a todos que desçam. O conserto será rápido”, ele disse, na porta do corredor.

Depois que todos saíram, menos a mulher, voltei pra dentro do ônibus e perguntei:

– Não quer descer?

– Prefiro ficar aqui.

Vi que um lenço cobria o rosto da criança.

– Não vai se afogar com esse calor?

– Não, ela está bem – a mulher disse e sorriu.

E é esse sorriso que eu não esqueço. No quarto da pensão, quando eu lembro tudo que aconteceu, quando eu penso na mala de relógios que perdi, no bicho empalhado que não comprei, o que salta diante de mim feito uma arara enlouquecida, grasnando, é o sorriso e a doçura de santa que a mulher tinha.

– Então, é uma menina... – eu disse.

– Sim, e se chama Luísa – ela respondeu.

Falei com o motorista. Ele disse que não podia obrigar a mulher a se levantar, que ia dar rolo, depois, na empresa.

Recomeçamos a viagem. Eu estava cansado. Dormi um pouco, acordei, voltei a ficar de olho na mulher. E ela lá, sentada, quieta, uma santa no nicho.

Paramos em Cascavel. No posto da Polícia Rodoviária descobriram que a criança não só estava morta há muitas horas como vinha recheada de cocaína.

Tão cedo não conseguirei viajar outra vez. Será que o senhor não conseguia recuperar a minha mercadoria? Se eu vendesse os relógios, teria dinheiro pra voltar pro Paraguai e encontrar a minha arara vermelha. Meti na cabeça que eu quero aquele bicho. Sim, eu sei, se eu tivesse trazido, seria pior, ela estaria agora recolhida no depósito da polícia, no escuro, sozinha, empoeirada, atacada por ratos e cupins.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

CADERNOS DO DR. EDMILSON: O MORTO PRIÁPICO E OUTRAS HISTÓRIAS, PARTE 3 - Alexandre Boeira

Tem dias que a gente abre a porta do escritório e torce para ninguém entrar. Esse é o dia em que eles entram. São meus clientes, mas preferia que não fossem. Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria fazer outra coisa, mas não sei.
Ele sentou na cadeira de couro, bela escolha. Disse que eu tinha sido bem recomendado, duvidosa escolha. Perguntou o que eu precisava saber para pegar a causa e quanto cobraria. Respondi como sempre:
- Me conta tudo. Absolutamente tudo. Desde o dia que teu pai conheceu tua mãe. E o preço? Bom, o preço depende do que tu me contar.
Veridiana quase teve um troço quando Bento lhe mostrou o papelucho. Se não tivesse parido a dois dias, jurou que ia parir de novo. O marido não fazia nada direito. Além disso, essa coisa de o hospital facilitar tudo... sei não, devia dar nisso mesmo várias vezes. Bastava levar a tal declaração de nascido vivo a uma salinha no próprio prédio, dois lances de escada abaixo da maternidade, e pronto. Qualquer mentecapto ia lá e dava sozinho o nome de registro ao filho. Bem que ela insistiu em ir junto, mas o médico proibiu. O parto fora difícil, mulher acima dos quarenta anos e, principalmente, acima dos oitenta quilos.
- Porra Bento! Desde quando Guinther é nome de preto?
- Calma nega, olha a pressão, olha os pontos. Eu te avisei que queria homenagear o doutor.
                   E assim nasceu Guinhter Amoroso da Silva, na maternidade São José. Aquela que foi pioneira no Brasil em facilitar a obtenção da certidão de nascimento com a instalação de um quiosque do Cartório da Segunda Zona do Registro Civil das Pessoas Naturais.

Guinther teve uma infância segura. Paparicado como era de se esperar dos pais que tentaram por vinte anos procriar, até então, sem sucesso. Embora cercado pela miséria da Vila Orfanatrófio, teve boa educação, cuidados com a saúde e morava na melhor casa da viela, com um quarto só seu e até um cachorro companheiro. Um Dog Alemão a quem deu o nome de Jorge, em homenagem ao santo, um pouco para reparar o erro de Bento e fazer a vontade da mãe, outro tanto para completar a troça involuntária do pai. Nego Guinhter e Alemão Jorge formavam uma dupla inseparável.
O dinheiro não provinha exatamente do trabalho dos pais. Poderia até dizer que sim, mas não era parte do trabalho do pai perder três dedos da mão direita na injetora ao final do turno de doze horas de trabalho. O processo foi um tanto demorado, a perícia um pouco humilhante. Doeu mais ainda ver o filho do patrão, a quem admirava mais que o centroavante do Aimoré, ficar ali de frente pra ele, ouvindo com cara de paisagem o Joca mentir que ele teria feito tudo de propósito. Doeu, mas valeu. Afinal de contas, o Doutor Guinther, ah o Doutor Guinther, colocou tudo em pratos limpos. Sentença em audiência, ditada de pé, com o processo aberto em uma mão e o dedo da outra – um daqueles que o pai não tinha – desenhando no ar as palavras que fluíam sem margem para dúvidas ou hesitações. Bento chorou ao sair da sala. E choraria de novo, dois anos depois, quando a decisão foi confirmada e louvada no Tribunal. Mas foi antes, foi durante a leitura da sentença que Bento tomou duas decisões. Comunicou à mulher uma delas. Todo o dinheiro ganho seria reservado para o filho que planejavam um dia ter. A segunda guardou pra ele. Se fosse guri, iria se chamar Guinther.
E Guinther progrediu. Melhor aluno da turma, primeiro lugar no vestibular da Universidade Federal, orador na formatura e uma bolsa de mestrado sanduíche, trampolim para o Doutorado, ambos na Alemanha, terra dos antepassados de seu padrinho involuntário. O nome nunca lhe foi empecilho. Ao contrário, adorava o burburinho da plateia cada vez que subia ao palco atendendo ao chamado do mestre de cerimônias ao Doutor Guinther, sempre precedido de seu imenso currículo. Mas o que mais gostava era a reação de seus alunos na primeira aula do curso regular de pós-graduação Comparative and European Private Law , na University of Edinburgh.
- Parou, parou. Para tudo aí Doutor. Posso lhe chamar de Doutor?
- Pode. Claro que pode.
- Várias coisas eu não tô entendendo, mas principalmente, se tu mesmo é Doutor, porque veio me procurar?
- Veja bem. Sou um acadêmico. Advoguei muito pouco, e sempre fora do Brasil. Além disso, o caso é de família, fora da minha área e totalmente desaconsellhável para a advocacia em causa própria.
A expressão do cara não mudou uma ruga quando eu interrompi seu relado de vida. Ou esse negão era um-sete-um dos bons ou era tudo verdade. Tava quase chamando a Dona Nívea pra botar pra rua aquele sacana, com direito aos impropérios e tudo. Acadêmico o cacete! Pegadinha tudo bem, mas dessa vez o Ariovaldo passou dos limites. Vai se foder, meu! Cadê o espírito esportivo? Só porque eu paguei uma puta pra se fazer de ex-mulher de boleiro para ele? Onde ele arrumou esse cara?
Resolvi dar uma chance ao Doutor. Se fosse verdade, ele deveria estar acostumado aos alunos desrespeitosos, pois eu mesmo ficaria ofendido com o meu tom de voz. E afinal de contas, ele passou a falar sobre coisas que me interessavam.
Guinther não só gostava da reação dos alunos, como as estudava. Estudava, interpretava e classificava. Mas só das alunas. Relacionava à cada aluna as reações mais demonstradas à sua presença e as ranqueava. Além de gênio, o negão era espada.
Era metódico. Ao receber a lista de chamada de cada classe, anotava todos os nomes de mulheres. Depois, procurava nos arquivos do mainframe da faculdade os dados pessoais e as fotos das acadêmicas e fazia uma ficha individual para cada uma. Não desprezava nem as feias, nem as casadas. Quando entrava na sala para a primeira aula, sua privilegiada visão periférica e sua prodigiosa memória identificavam e gravavam a reação de cada aluna fichada ao ingresso daquele homem alto, forte, de peitoral definido e impecavelmente vestido, mas, sobretudo, preto, muito mais preto que elas poderiam esperar de um professor chamado Guinther.
Na segunda semana do curso ele já sabia identificar a evolução das reações e dos sentimentos. Colocava metodicamente na ficha de cada uma: espanto, curiosidade, admiração, interesse, tesão. Ao final do segundo mês, já estava atualizando a classificação e identificando seus alvos preferenciais. Quando chegava à última etapa, a aluna estava no topo do ranking, pronta para como ele mesmo dizia, passar da fase de contemplação para a fase de experimentação e interação física. Até pra trepar o Doutor Guinther tinha vocabulário refinado.
Mas até o mais metódico dos planos tem sua falha. A falha de Guinther revelou-se no imponderável, naquilo que nem o conhecimento, nem a didática, nem mesmo seu charme tropical puderam controlar ou se sobrepor. O imponderável chamava-se Sonja, uma estudante sueca de 21 anos de idade. Pernas mais longas que o Caminho de Santiago de joelhos, cabelos louros, longos e lisos e olhar de gata no cio, ela enfeitiçou o professor desde a primeira aula do semestre seguinte.
Sonja ingressou na turma apenas no segundo semestre. Havia cursado o primeiro em Gotemburgo, em univesidade co-irmã da University of Edinburgh. Não que Guinther não estivesse preparado para ela. Já tinha finalizado quatro estudantes no primeiro semestre e outras duas estavam bem ranqueadas, prontas para a experimentação. Sabia do ingresso da nova aluna, já tinha seus dados e fotografia. Estudar a reação de apenas uma mulher era moleza, quase sem graça. Tava no papo.
Contudo, quando Guinther entrou na sala naquela manhã outonal de agosto em Edinburgh viu que não estava preparado para ela. Sonja queimou todas as etapas. Guinther não viu no olhar de Sonja nem espanto, nem curiosidade. Não viu admiração, nem interesse e, principalmente, não viu tesão. O que viu foi certeza. Sonja lhe mandava todas as mensagens de uma só decisão. Decisão dela, não dele. Sonja ia lhe devorar. Não, ela não era a esfinge. Não queria ser decifrada. Não havia enigma, apenas certeza, Sonja é que ia comer o Doutor Guinther.
A aula foi a pior que ele já ministrou. Confundiu os institutos, misturou os princípios, falou em três línguas, mas não se comunicou. Foi pior ainda quando percebeu as expressões de três dos doze alunos homens. Não para ele, nem para a aula, para Sonja. Três dos doze homens da sala já haviam sido devorados. Ele seria tão somente o quarto. E Sonja havia chegado a Edimburgo a apenas duas semanas.
Depois de devorado, Guinther rastejou. Humilhou-se, pediu, implorou. Queria só para ele aquela máquina escandinava. Não adiantou, Sonja tinha seu plano, tinha também seu ranking. Restava a Guinther conformar-se ao seu papel de coadjuvante na vida dela e retomar seu método original, pois já estava sendo cobrado, tanto pelas ranqueadas que atingiam o topo e não recebiam seu upgrade, quanto pela direção da universidade, que havia notado o decréscimo na avaliação do curso, ainda muito bem conceituado, mas abaixo do que o currículo e histórico do ministrante sempre agregaram à instituição.
Quando já pensava em largar tudo e voltar ao Brasil veio a surpresa. Sonja o procurou depois da tradicional aula de sexta-feira, normalmente a menos produtiva da semana. Disse que tinha terminado sua fase de pesquisa e estava pronta. Os dois estavam prontos. Ele nem precisou perguntar o que ou para quê. O estudo da reação dela disse tudo. Não era admiração, não era surpresa, não era tesão. Era amor. E também era amor o que ela via naquele homem, e ele não conseguia esconder.
Casaram logo depois que ela se formou. Prosseguiram morando em Edimburgo, tiveram dois filhos e ainda mantinham os velhos hábitos. Ele continuava dando aulas e fazendo seu ranking, embora sem a mesma volúpia. Ela também dava uma devoradinha aqui e ali, apenas para não perder a prática e continuar decifrando seu homem.
- Para! Para! Para! Para tudo.
Parei de novo, antes que ele me enrolasse e a tempo de ficar um pouco de lado na cadeira e cruzar as pernas para disfarçar a leve ereção que a tal da Sonja já tava me causando.
- Doutor Guinther, qual é o segredo nessa história? O senhor sabe muito bem que não posso advogar fora do país? Ta me tirando pra bobo? Que culpa tenho eu que a vadia continuou dando pra faculdade toda? Aquilo lá é Europa. Deve ser comum. Além do mais, a mulher é sueca. Todo mundo sabe que sueca gosta de dar. Não precisa ter vergonha de contratar um advogado de lá mesmo para a separação.
- Não é nada disso. Eu não quero me divorciar da Sonja. Ela é a mulher da minha vida. Nossa relação é firmada em bases sólidas e bem estabelecidas. Não há dissenso nesse tópico. O problema é outro e o senhor vai ver que pode me ajudar.
Porra! O cara fala bonito até pra justificar os chifres. Pois bem, dei ao doutor a segunda chance e continuei a ouvir sua história.
O problema era da minha alçada sim. Acontece que o acadêmico não ministrava apenas na Europa. Mantinha também um curso de férias no Brasil, aqui mesmo na Católica, a fim de poder visitar os pais sem gastar com as passagens e ainda faturar um extra. Eram também as férias conjugais ajustadas nas tais bases sólidas. Claro, enquanto ela dava uma devoradinha por lá, ele também fazia um fast ranking nas brazucas. Daí surgiu seu probleminha.
     Em uma dessas férias o ranking do doutor foi escasso. Das vinte e uma mulheres do curso, apenas quatro chegaram ao final do ranking e, dessas, somente uma atingiu a fase de integração física. Por conta da safra exígua o doutor deu mole, ou melhor, deu duro demais. Em um mês de curso, praticou a integração física dezoito vezes. Tudo bem, era a quantidade regular, a média registrada no Brasil. Acontece que todas as dezoito foram com a mesma aluna. Todo mundo sabe que as brasileiras dão fácil. Porém, todo mundo sabe também que comer a mesma mulher dezoito vezes no mês, seja no Brasil, seja em qualquer lugar do mundo, ou é fixação em alguma mina pay-per-fuck, ou é namoro.
Guinther voltou para Edimburgo sem saber que tinha deixado namorada no Brasil. Pior que isso, quando retornou aos braços de sua amada Sonja, não sabia que havia deixado um filho encomendado e um futuro sogro colérico, disposto a tudo. Disposto a mover todos os mundos e fundos que o dinheiro dele poderia alcançar para fazer aquele filho-da-puta metido a besta reparar o malefício causado a sua única filha. O Senador Ferdinando Carllos não costumava ser flexível. Tinha sido ao concordar com sua esposa e deixar Nathália vir ao sul, sozinha fazer o curso de verão tão recomendado, mas prometeu a si mesmo que nunca mais seria.
De tanto ameaçar Guinter, ameaçar física e psicologicamente, o senador conseguiu. Para evitar que ele fosse em pessoa até Edimburgo, o que acabaria por expor a família européia do doutor, da qual nem o senador nem Nathália sabiam existir, ele concordou em registrar o filho e casar com a ofendida. Foi o que fez em uma das férias conjugais, de modo que Sonja nunca ficou sabendo.
- Safado! O que tu quer comigo é o divórcio no Brasil. Quer se livrar da encrenca daqui e voltar pra vadia?
- Preliminarmente, devo dizer que perdôo seu vocabulário. Repito que seus préstimos foram muito bem recomendados e acrescento que serão também bem pagos. Quem o indicou também me alertou sobre seu temperamento. Embora acredite que minha fonte não seja tão bem informada, pois me alertou mais ainda sobre sua secretária, o que achei estranho.
- O doutor ainda não viu nada. Se quiser lhe ofender mesmo, aí eu chamo a Dona Nívea.
- Continuando, doutor Edmílson, a questão maior é que eu casei no civil, tanto aqui quanto lá. Preciso de um divórcio rápido e limpo. Preciso fazer isso agora e voltar para minha vida.
- Sim, mas o Senador, o cara vai te capar. Se não te capar por comer a filha dele, vai te capar por querer deixar ela, vai te capar mais uma vez pela tua bigamia, e vai te capar de novo quando souber das questões financeiras que um divórcio implica.
- Doutor Edmílson, eu tenho apenas dois testículos. Além disso, o senador já morreu. E eu não quero nada da Nathália. Quero apenas ficar livre. Por mim, deixo toda minha parte para o Frederico Carllos Neto.
- Se é tudo tão fácil assim, porque o senhor precisa de mim? Poderia ser qualquer um.
- Porque o senhor defende os homens. Porque o senhor é famoso por divórcios rápidos. Basta uma conversa, um café com a outra parte e o acordo sai. E também porque disseram que o senhor ia gostar da minha história.
Ele havia me estudado mesmo. Será que era tudo obra da sua fonte anônima, ou ele tinha aplicado em mim algum de seus planos metódicos. Porra, sai pra lá. Não tem essa de experimentação e integração física comigo. Ainda mais com um negrão de quase dois metros de altura.
Esse divórcio vai ser moleza. A parte da bigamia nem vai aparecer. Mesmo assim vou cobrar caro. Quanto custa uma passagem para Edimburgo? Além de um cafezinho com a mulher brazuca, vou querer um almoço de doze talheres com a Sonja. Cacete, se eu tivesse dois paus, tava com ambos duros agora.
Sou advogado, especializado em divórcios. Defendo apenas os homens, é minha missão na terra. Queria saber fazer outra coisa, mas não sei. Queria conhecer a Suécia.