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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CONTO: BRONCOBURGER - Mário Garrastazu Médici

Eu de novo, Asta.
Tua voz fica mais rouca na caixa postal.
O celular que te dei de presente deve estar no silencioso como ensinei, para não perturbar o sono da Débora. Vocês já devem estar dormindo. Mas tive que ligar outra vez. Queria muito falar com a pequena, ouvir a vozinha dela, dizer o quanto eu procurei esse pinguim azul que ela viu no programa, Pablo, não é?
É uma da manhã, já desligaram a tevê, só sobraram as garçonetes a me olhar enviesado. Se bem que elas sempre me olharam torto, desde a primeira quarta-feira, tu conhece o jeitão do nego, uma piadinha saliente aqui, um olhar malicioso ali, se deixarem já me encosto, já dou um abraço, já passo a mão.
Não é por causa delas que eu venho, pelo menos não é só por causa delas. Sozinho faz um ano nessa cidade, o sujeito tem que arrumar alguma diversão. As minhas são simples, tu conhece bem. Uma boa carne, cerveja bem gelada, o jogo do grêmio, um retoço com as gurias.
Eu sei que essa parte te deixa mais triste, alemoa, sei que é essa parte que vem tornando nossos telefonemas cada vez mais silenciosos, uns silêncios prolongados que chegam a arranhar o ouvido. Eu tô aqui trabalhando por nós, não esquece, por nós e pela Debrinha, pra gente um dia morar num lugar com nome de cidade, porto, santo, o caralho, e não numa linha. Porque linha sempre me lembrou aqueles hipnotizadores de feira, que deitavam um traço no chão e punham a galinha inerte, sem poder se mover, fixada naquele risco. Não quero ser galinha a vida inteira na Linha Genehr, amor. Sei que sempre vou ser pinto miúdo, mas quero ter os meus voos, não importa sejam curtos e fracos, mas os meus voos. E que os do meu ninho possam voar comigo.
Por isso essa mudança pra cá, por isso esse ano todo morando na Capital, vendendo colchão de mola desde as sete da manhã de segunda a sábado, visitando trinta clientes por dia, cafezinho, sorriso, aperto de mão sebosa. Por isso os plantões na loja nos domin...

Oi. Eu de novo. Bosta de caixa postal.
Pois é, nos domingos. Daí só me sobra a quarta de noite pra ver o tricolor, aqui nessa lanchonete descobri um sanduíche de carne de um quarto de quilo, um almondegão de picanha com cebola e queijo, chama BroncoBurger, com duas cervejas bem geladas desce que é uma beleza. Hoje já tomei quatro, daí fico pensando nessas coisas, agora vem a garçonete mais gostosa me mandar embora, já acabou o jogo, fechou a cozinha, terminou a festa. É a mais novinha, o nome dela é Carol e devolve com asco meus olhares, mas me lembra de ti, Asta.
De como tu era bonita, as mesmas ancas, o mesmo olho azul, o cabelo louro escorrido.
Na verdade me lembra de mim, de um jeito que eu tinha de te olhar, de me encantar a cada movimento. E tu ainda é uma mulher maravilhosa, alemoa. Não sou só eu quem acha, todo o povo da Linha sempre disse que eu tinha muita sorte, o Welter da venda, esse que tu disse que visitou teu pai, o Welter sempre com o olho espichado pra tua bunda, tuas tetas, pensa que eu não via mas eu via.
Hoje eu tomei essas seis ou sete cervejas com meu BroncoBurger de sempre e deu vontade de voltar, Asta. Deu vontade de devolver o Gol da firma, de mandar o supervisor sentar no conjunto de molas - sem a capa protetora -, de pegar o ônibus da madrugada e ver vocês acordarem. Eu sei que já tem mais de três meses da última vez que  vi a Débora, e que já tinha duas semanas que eu não ligava. Mas a vida corre demais aqui nessa merda de terra, esse mês dobrei a meta, viu que tinha um dinheirinho extra pra tevê grande nova que tu queria?
Daí esque...

Alô. Cacete.
Esqueci.
Esqueci que vim para Porto Alegre trabalhar por vocês, para deixarmos pra trás a Linha de vez. Juntos.
Esqueci.
Entre um folder de colchão e os travesseiros de pena de ganso, entre tirar pedido sobre pedido e os extratos diários nesse telefone de tela engordurada dos infernos que me deram, entre uma cerveja e uma olhada nas coxas das gurias que vêm com os namorados ver o jogo, esqueci.
Só que hoje lembrei, Asta.
Sabe como foi?
Veio um casal diferente hoje. Acho que não sabiam que era dia de jogo e trouxeram uma filhinha do tamanho da Débora. Sentaram numa mesa perto da minha, alheios ao burburinho do meio tempo, ao pagode improvisado que se instala sempre que o tricolor está ganhando. Pediram seus sanduíches, refrigerantes, batatinha sorriso para a menina.
E ela começou a sambar pra mim, a espevitada. Bem no compasso certo do bumbo, pezinho pra frente, pezinho pra trás, no ritmo da batida e sem tirar o olho de mim. De início, já tocado pela décima cerveja e pelo short jeans de uma morena bunduda dançando a menos de dois metros, pensei em dizer sai pra lá, filhinha, que isso é coisa de gente grande. Mas a guria continuava aquele passinho, com um sorriso inexplicável dirigido pra mim. Um sorriso solar, de bergamota doce sentado na grama de casa, lá nos fundos, jogando as sementes na cabeça do cusco. Não pra machucar, mas pra ele vir se esfregando querendo carinho. Um sorriso de goiabada fervendo saindo do tacho pra sapecar o beiço, de pé quente pisando a terra fria e fofa do fundo do açude num dia daqueles. Um sorr..

(Por que fazem essas merdas com um tempo tão curtinho?)
Um sorriso desses que estou perdendo todos os dias e que o puto do Welter deve desfrutar cada vez que tu vai no mercado com a Débora, buscar um feijão, um leite, um melado, e ele oferece bala de troco, a azedinha de morango que a pequena gosta,  com aqueles dedos ossudos nojentos.
O que  esse veado foi falar com o teu pai? Foi pedir tua mão? Tu já é casada, ele que vá atirar nas pombas do Seu Augusto, que tem aquelas três gordas encalhadas. Vontade de meter a mão na cara desse sujeito, nunca me desceu. Aposto que teu pai gostou, né? O velho sempre quis um alemão do cu vermelho pra matear com ele no sítio, nunca engoliu a ideia de ter genro pardo. Foda-se. Tu gostava, tu sempre gostou, tu costumava adorar os amassos no fuca atrás da olaria do Schenkel. Depois foi rareando, foi esfriando, não é assim mesmo depois que nascem os piás?
Tô com saudade.
Dezesseis cervejas. Um quadrado perfeito de garrafas verdes na minha frente. Quatro por quatro. Bonito, linhas retas, sem cantos pontudos demais. Bem o contrário de nós, com tanta felpa e rebarba se desprendendo da madeira e machucando os dedos.
Vou embora. Agora vão fechar mesmo a bodega, não tem mais jeito.
Queria mesmo que não fosse tão tarde.
Que eu não estivesse com a língua tão enrolada, com a cabeça assim oca, que a Débora ainda pudesse estar acordada.
Acordada para me ouvir dizer boa-noite-filhinha-vai-ficar-tudo-bem-papai-te-ama-e-vai-voltar-logo e não dormindo abraçada na merda de pinguim azul que o filho da pu...

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