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terça-feira, 17 de abril de 2012

CONTO: A TERRA QUE NOS DERAM - Juan Rulfo


Depois de caminhar tantas horas sem encontrar nem uma sombra de árvore, nem uma raiz de nada, ouve-se o ladrar dos cachorros.

A gente às vezes chegava a pensar, no meio deste caminho sem margens, que nada existiria depois; que não se poderia encontrar nada, ao final desta planura rajada de gretas e de arroios secos. Mas sim, existe algo. Há um povoado. Ouve-se o ladrar dos cachorros e sente-se no ar o cheiro da fumaça, e se saboreia esse perfume das pessoas como se fora uma esperança.

Mas o povoado está ainda muito lá adiante. É o vento que o aproxima.

Estamos caminhando desde o amanhecer. Agorinha é por volta das quatro da tarde. Alguém se vira para o céu, estira os olhos até onde está dependurado o sol e diz:

— São mais ou menos as quatro da tarde.

Esse alguém é Militão. Junto com ele, vamos Faustino, Estevão e eu. Somos quatro. Eu nos conto: dois adiante, outros dois atrás. Olho mais atrás e não vejo ninguém. Então me digo: "Somos quatro". Não faz muito, lá pelas onze, éramos vinte e tantos, mas aos pouquinhos foram se dispersando até não restar nada mais que este punhado que somos nós.

Faustino diz:

— É capaz que chova.

Todos levantamos a cara e miramos uma nuvem negra e pesada que passa por cima de nossas cabeças. E pensamos "É capaz, sim".

Não dizemos o que pensamos. Já faz tempo que se acabou nossa vontade de falar. Acabou-se com o calor. Qualquer um conversaria muito à vontade em outra parte, mas aqui dá trabalho. A gente conversa aqui e as palavras se esquentam na boca com o calor de fora, e ressecam a língua da gente até que acabam com o fôlego. As coisas aqui são assim. Por isso ninguém está para conversas.

Cai uma gota d'água, grande, gorda, fazendo um furo na terra e deixando uma pasta como de uma cusparada. Cai só ela. Esperamos que continuem caindo outras e as buscamos com os olhos. Mas não há mais nenhuma. Não chove. Agora, se a gente olha o céu, vê a nuvem escura correndo lá longe, a toda pressa. O vento que vem do povoado se encosta nela, empurrando-a contra as sombras azuis dos morros. E a gota caída por engano, esta a terra come e desaparece com ela em sua sede.

Quem diabos faria este llano tão grande? Para que serve, hein?

Voltamos a caminhar, havíamos parado para ver chover. Não choveu. Agora tornamos a caminhar. E a mim me ocorre que temos caminhado mais do que temos andado. Ocorre-me isto. Tivesse chovido talvez me ocorressem outras coisas. Afinal eu sei que, desde que eu era garoto, nunca vi chover sobre o llano o que se chama chover.

Não, o llano não é coisa que sirva. Não há coelhos, nem pássaros. Não há nada. A não ser uns quantos arbustos enfezados e uma que outra manchinha de carrapicho com as folhas enroscadas, a não ser isso não há nada.

E por aqui nos vamos nós. Os quatro a pé. Antes andávamos a cavalo e trazíamos uma carabina terçada. Agora não trazemos nem sequer a carabina.

Eu sempre achei que fizeram bem nisso de nos tirar a carabina. Por essas bandas acaba sendo perigoso andar armado. Matam o cara sem avisar, se o vêem todo o tempo com "a 30" amarrada às correias.

Mas os cavalos são outro assunto. Se viéssemos a cavalo já teríamos provado a água verde do rio e passeado nossos estômagos pelas ruas do povoado para que a comida baixasse. Já teríamos feito isso, caso tivéssemos todos aqueles cavalos que tínhamos. Mas também nos tiraram os cavalos junto com a carabina.

Viro-me para todos os lados e contemplo o llano. Tanta e tamanha terra para nada. Os olhos do sujeito escorregam ao não encontrar coisa alguma que os detenha. Só umas quantas lagartixas saem a assomar a cabeça por cima de seus buracos e logo que sentem a chicotada do sol correm a esconder-se na sombrinha de uma pedra. Mas nós, quando tivermos de trabalhar aqui, que faremos para nos refrescar do sol, hein? Por que foi esta crosta dura como cimento que nos deram, para que a semeemos.

Nos disseram:

— Do povoado para cá é de vocês.

Nós perguntamos:

— O Llano?

— Sim, o llano, todo o Llano Grande.

Interrompemos o falador para dizer que o llano não queríamos. Que queríamos o que estava perto do rio. Do rio em diante, pelas várzeas, onde estão essas árvores chamadas casuarinas e a terra boa. Não este duro couro de vaca que se chama llano.

Mas não nos deixaram dizer nossas coisas. O delegado não tinha vindo para conversar conosco. Pôs os papéis em nossas mãos e nos disse:

- Não vão se assustar com tanta terra só para vocês.

- É que o llano, senhor delegado.

- São centenas e centenas de alqueires.

- Mas não há água. Nem ao menos para se fazer um bucho tem água.

- E o temporal? Ninguém disse que receberiam terras irrigadas. É só chover ali e o milho se levanta como se fosse esticado.

— Mas, senhor delegado, a terra está esgotada, dura. Não cremos que o arado se enterre nessa como pedreira que é a terra do llano. Seria preciso fazer buracos com o enxadão para semear a semente e nem assim é possível nascer alguma coisa; nem milho nem nada nascerá.

— Transmitam sua reclamação por escrito. E agora vão-se. É o latifúndio que devem atacar e não o governo que lhes dá a terra.

— Espere, senhor delegado. Nós não dissemos nada contra o centro. É tudo contra o llano. A gente nada pode contra o que não pode. Isso é que dissemos. Espere para que a gente explique. Veja, vamos começar por onde íamos...

Mas ele não quis nos ouvir.

Assim nos deram esta terra. E nesta chapa quente querem que semeemos as sementes de algo, para ver se algo brota daqui. Nem urubus. A gente os vê lá longe de quando em quando, muito alto, voando às corridas, tentando sair o mais depressa possível deste branco torrão endurecido, onde nada se move e por onde se caminha como recuando.

Militão diz:

— Esta é a terra que nos deram.

Faustino diz:

— O quê?

Eu não digo nada. Eu penso: "Militão não tem a cabeça no lugar. De certo é o calor que o faz falar assim. O calor que traspassou o chapéu e esquentou-lhe a cabeça. E se não, por que diz o que diz? Que terra nos deram, Militão? Aqui não há nem o tiquinho de que necessitaria o vento para brincar de redemoinho.

Militão torna a dizer:

- Servirá para alguma coisa. Servirá nem que seja para correr éguas.

Que éguas? — pergunta-lhe Estevão.

Eu não havia reparado bem em Estevão. Agora que fala, observo-o. Veste um capote que lhe chega ao umbigo, e debaixo do capote estica a cabeça uma coisa parecida com uma galinha.

Sim, é uma galinha o que Estevão leva debaixo do capote. Vê-se os olhos dormidos dela e o bico aberto como se bocejasse. Eu lhe pergunto:

- Escuta, Tevão, de onde surrupiaste essa galinha?

— É a minha! — diz ele.

— Não a trazias antes. Onde a negociaste, hein?

— Não a negociei, é a galinha de meu galinheiro.

— Então a trouxeste como mantimento, não?

— Não, trago para cuidar. Minha casa ficou vazia e sem ninguém que lhe desse de comer, por isso a trouxe. Sempre que saio para longe, carrego-a.

— Escondida aí vai se afogar. É melhor deixá-la ao ar livre.

Ele a acomoda debaixo do braço e lhe sopra o ar quente de sua boca. Logo diz:

— Estamos chegando ao despenhadeiro.

Já não ouço o que Estevão continua dizendo. Pusemo-nos em fila para descer a barranca e ele vai um tanto adiante. Vê-se que agarrou a galinha pelos os pés e a sacode a cada passo, para não lhe bater a cabeça contra as pedras.

À medida que baixamos, a terra se faz boa. O pó sobe de nós como se fosse uma tropilha de mulas o que baixasse por ali, mas gostamos de nos encher de pó. Gostamos. Depois de vir pisando durante onze horas a dureza do llano, nos sentimos muito à vontade envoltos naquela coisa que brinca sobre nós e tem gosto de terra.

Por cima do rio, sobre as copas verde das casuarinas, voam bandos de galinholas verdes. Isso também é de que gostamos.

Agora os latidos dos cachorros se ouvem aqui, junto a nós, e é porque o vento que vem do povoado esbarra no barranco e o enche de todos os seus ruídos.

Estevão voltou a abraçar sua galinha quando nos aproximamos das primeiras casas. Desata-lhe os pés para desinchá-los e logo ele e sua galinha desaparecem detrás de uns cedros.

— Por aqui eu fico — nos diz Estevão.

Nós seguimos adiante, mais para dentro do povoado.

A terra que nos deram está lá em cima.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

terça-feira, 3 de abril de 2012

CONTO: O CIGARRO MOLHADO - Mauro Santayana

A súbita, ou insistente, lembrança de coisas ínfimas, costuma ser a chave da memória, para que revivamos momentos fortes da vida. Pode ser um cigarro que não se acendeu, por estar úmido, ou o esbarrão em qualquer desconhecido, na saída de metrô, em Roma ou Madri. No seu caso, foi o cigarro. Era madrugada em tempo de desesperado apego ao fumo, e  chegara ao hotel, com a roupa totalmente molhada pelo aguaceiro inesperado. Viera do restaurante, na cidade desconhecida, na mesma rua do hotel, mas a quatro quarteirões, o que serviria a uma boa caminhada.

Havia encontrado o restaurante, vietnamita, por acaso, e a curiosidade o levara a pedir meia dúzia de pratos exóticos, começando pelos invariáveis enrolados de ervas em papel de arroz. Mas a situação inusitada, a de entrar em restaurante oriental, passada a meia noite, e em país do norte da Europa, nada  diria, se não fosse o cigarro molhado pela chuva, enquanto, ainda jovem, corria o meio quilômetro para chegar ao hotel garni.

A vantagem desses pequenos hotéis, sem porteiros durante a noite, é que você recebe suas duas chaves, a da porta principal e a do quarto, e quase nunca vê alguém. Assim, pôde entrar, tirar a roupa — e procurar o cigarro, a fim de se repor da corrida. Para o fumante, até o cansaço é um apelo à nicotina.

Retirou o cigarro do maço, e viu que todos eles estavam encharcados, como também algumas cédulas que levava no bolso do outro lado do paletó. Achou que bastariam duas tragadas, e retirou de outro bolso o belo isqueiro de prata, um de seus poucos e pequenos luxos. A chama era forte, chama para acender charutos, e levou-a à ponta do cigarro. De nada adiantou. Só sentiu o aroma alterado do fumo, que o incitou ainda mais. Decidiu, então, vestir o terno de reserva e esperar, já embaixo, a chuva passar. Iria buscar um bar que estivesse aberto, a fim de comprar o maldito cigarro, sem o qual não poderia dormir. Assim fez. Havia mais ou menos meia hora que esperava, a chuva continuava e ele estava em estado de quase desespero, olhando pela fresta da porta, disposto a molhar-se outra vez — mas se lembrou de que, então, não teria o que vestir ao deixar o hotel na manhã seguinte.

Foi quando a porta se abriu para o desconhecido. Viu logo que estava bêbado, pelo cheiro e pela voz enrolada, com que disse boa noite. Respondeu, com timbre neutro, ao cumprimento; não gostava  de conversar com estranhos. Mas a situação era diferente e o desconhecido vinha protegido por uma sólida capa de gabardine: quem sabe teria um cigarro seco que pudesse aliviá-lo?

O outro  deu o cigarro, mas resolveu contar sua história, engasgadas de brandi as palavras. Convidou-o a seu quarto, mas disso ele soube esquivar-se, mostrando o pequeno salão ao lado, em que serviriam o café da manhã, onde poderiam falar-se. O recém-chegado despejou a desgraça: sua mulher o deixara, havia poucos dias, e, pelo que soubera, ela o trocara “por um encardido sul-americano”. Tratou de falar muito rápido, para que o desconhecido não lhe identificasse o sotaque, e agradeceu, pelo menos naquele momento, a circunstância de sua ascendência europeia, de pele e olhos claros; não podia ser visto, pelos  olhos magoados do interlocutor, como um mestiço schmutzig, como o nórdico se referira, com desdém, ao seu rival.

O que ele lhe poderia dizer? Pensou em ser franco: nada tinha a ver com aquilo. Que o outro procurasse um amigo velho, o pastor ou o padre, conforme sua crença e, no último caso, um psiquiatra que lhe receitasse uma pílula qualquer de esquecimento, ou do regozijo. Lembrou-se de um colega brasileiro, que aconselhava, em casos semelhantes, arranjar outra mulher imediatamente, nem que fosse por pouco tempo, mas mulata: ninguém melhor do que uma mulata para curar dor de cotovelo.

Pediu desculpas por não saber ajudá-lo, em questão tão pessoal e íntima. Se ele quisesse um conselho sobre o mercado de capitais, talvez lhe pudesse ser útil, mas não em assuntos como aquele. Ousou saber de que cidade era o homem triste e bêbado, e ele disse. Disfarçou o olhar, para não enfrentar o rosto do outro, e lhe perguntou o nome. Ao ouvi-lo, teve certo desassossego. Para ter certeza, jogou seu verde, ao aconselhá-lo a arranjar imediatamente uma mulata que o consolasse naquela circunstância.

Não soube se o outro sorriu, ou se fez uma careta, posto que mirava os sapatos ainda úmidos que lhe esfriavam os pés.

— Mas ela é mulata, meu caro, do Haiti, e de olhos azuis — disse o bêbado.

Concluiu que nada podia realmente fazer, deu boa noite, subiu. Fechou bem a porta do quarto, dando duas voltas na chave, arrumou a maleta, com a roupa molhada envolvida no exemplar de Die Welt daquele dia, e, como já pagara a diária, como é costume nesses hoteizinhos, em lugar de sair às seis, partiu logo que estiou. Ao passar pela porta não olhou para o pequeno salão de café, mas teve a certeza de que o outro ainda estava por lá, esparramado no sofá de espera. Tomou o primeiro trem de volta a Berlim, onde o aguardava uma mulata haitiana, de belos olhos azuis. E é claro, que depois daquilo, não esperou uma semana para trocar de país, levando a mulata para o seu novo destino.

(sugestão do Mig)