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sexta-feira, 11 de abril de 2014

UM PASSEIO NA PRAIA - Mário Garrastazu Médici


UM PASSEIO NA PRAIA
 
 
Devia ter trazido o chapéu de abas largas, não esse boné. Mas hoje o modelito era esportista, top novo, o tempo fechado. Quem previu esse sol maluco? Agora não adianta, a praia não é extensa, um quilômetro e meio. Ainda faltam algumas passadas pra chegar no paredão, não vou desistir agora. Caminhada tão boa, ainda bem que não trouxe a menina, a essa hora já ia estar choramingando, a ranhenta.
 

Não consegui segurar o choro quando a Dona Lídia me deixou pra trás, mas capaz que eu ia deixar de ir até o paredão,  bonito lá, todas aquelas pedras, acho que dá pra ver algum peixinho, não só essas tatuíras que ficam se enfiando pelos dedos. Pena a areia assim quente a essa hora, mas caminhando aqui pela beira, por dentro da água gelada, tá bem bom...
 

Não entendi essa ideia do Edegar, trazer a pretinha pro nosso fim de semana. Aliás, ter adotado essa criatura foi um completo desvario. Depois de mais de dez anos tentando, o mínimo que eu merecia era um anjinho de cabelo louro como o meu, um serafim de olhos azuis que me ficasse bem no colo, que eu pudesse postar fotos nas redes sociais sem assustar as gurias da academia. Mas vir com esse bom coração de capitão de indústria arrependido e catar logo a pelúcia mais horrenda da loja, uma macaquinha negra, meio renga e de olho caído. Francamente, Edegar. Bem que tu mereceu a minha encarnação de Lisístrata, vai ficar na mão ainda um bom tempo.


Às vezes eu penso que a Dona Lídia não gosta muito de mim. O pai não, o pai desde o primeiro momento me deu aquele abraço apertado, passou a mão no meu nariz escorrendo e me disse baixinho no ouvido vou-te-tirar-daqui-garota-isso-aqui-não-é-vida. E agora não tem nem três meses que estou com eles e já me trazem pra ver o mar. Eu achei sempre que só ia ter a visão do mar do filme da sereia que a gente via no abrigo, mas lá o mar era cinza escuro e a areia cinza mais claro, desbotado, e não dava pra sentir o quente na sola do pé ou o gelo nas canelas.
 

Pensando bem, eu podia ter trazido o estropício pra caminhar comigo. Não que eu fosse matar a minha vontade de dar um caldo na pretinha, mas pelo menos uma conversa séria a gente podia ter, lá em casa nunca ficamos sozinhas, eu podia ensinar uma ou duas coisas sobre mandar e obedecer, sem o olhar de buldogue do plasta do Edegar, podia mostrar como dói uma orelha bem puxada. O que mais vou ensinar pro monstro? a jogar tênis no clube? a experimentar vestido? a saber a diferença entre o talher da salada e o do peixe?
 

Ah, o sono depois de três caipiras, numa sombra de praia, tem outra textura e duração. Cadê a menina, será que foi com a Lídia? Eu sabia que a ideia de um fim de semana na praia era boa, a Lídia torceu o nariz a princípio, mas agora tá aí, levando a moleca pela mão pra caminhar na beira. Com sorte estão tomando um picolé, ou fazendo castelo na areia molhada. As coisas vão se ajeitar. O nosso dever de estender a mão vai ser cumprido, no fim das contas, com alegria e devoção. 
 

Será que tem problema se eu entrar e me refrescar só um pouco? O paredão tá tão longe, não aguento dar mais nem um passo. Que sede. Vou entrar só um pouquinho, só até a barriga, o pai disse três vezes: Umbigo. Umbigo. Umbigo. E nunca vou desobedecer o paizinho. O pai. A Dona Lídia. O pai. A dona Lídia. Será que um dia vai me dar coragem de chamar a Dona Lídia de mãe, de mamãe, de mãezinha?
 

Pronto. Solzinho gostoso. Caminhada firme de quarenta minutos. Estou em dia de novo com o clericot e os anéis de lula. Pena o Edegar não poder aproveitar essa disposição toda, minha greve não tem dia para acabar. Ele vai sentir o aperto, é carola só do lado de fora da cama, já deve estar subindo as paredes. Azar. Quem mandou me apresentar essa? Agora tá lá no guarda-sol com a cabeça cheia de caipira, nem aí pra negrinha. Cadê o diabo da negrinha?
 

Ui. Água boa. A onda é mesmo brava como a gente vê no desenho. E dá uns puxões no corpo quando volta, tem que fincar bem o pé no fundo da areia pra gente não ser levada. Como será que é um pouco mais lá pro fundo, será que é ainda mais geladinho, que a onda não é tão forte?
 

Que bom. Lá vem a Lídia. O sol tá forte, já é hora de levantar acampamento. Cadê a guriazinha?
 

É pra isso que vocês querem ter pai e mãe? Sair daqui, onde tem cama, comida, aula, brinquedo, pra cair na mão de uma bruxa dessas? alguém aqui sabe nadar? Acham que paizinho e mãezinha vão cuidar, vão cair na água pra salvar? Nessa hora sempre começavam os gemidos assustados, os soluços, os choros, as menores se abraçando nas mais taludas. Quando as novatas eram meninas maiores, com peitinho e tal, preferia contar a história do paizinho abusador, que visitava o quarto no meio da madrugada para um boa noite especial. Com as pequerruchas, porém, nada superava a história da menina perdida no mar gelado, o repuxo traiçoeiro.
 

Hora de desligar as luzes, cambada de medrosas. Não quero ver ninguém molhando a cama. Pronto. Reafirmado o posto de veterana, de comandante-em-chefe, de maioral do abrigo. A partir de amanhã teria mais essa leva de abandonadas na mão, seguidoras e subservientes, até que uma a uma fossem sendo resgatadas por alguém e outras viessem em substituição. Como nos últimos dez anos. Deitada no beliche central, no escuro do alojamento, fechou bem o olho bom e tentou ignorar, só por mais uma noite, o gosto de água salgada nos lábios e o quente da areia fofa entre os dentes.


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