UM PASSEIO NA PRAIA
Devia
ter trazido o chapéu de abas largas, não esse boné. Mas hoje o
modelito era esportista, top novo, o tempo fechado. Quem previu esse
sol maluco? Agora não adianta, a praia não é extensa, um
quilômetro e meio. Ainda faltam algumas passadas pra chegar no
paredão, não vou desistir agora. Caminhada tão boa, ainda bem que
não trouxe a menina, a essa hora já ia estar choramingando, a
ranhenta.
Não
consegui segurar o choro quando a Dona Lídia me deixou pra trás,
mas capaz que eu ia deixar de ir até o paredão, bonito lá,
todas aquelas pedras, acho que dá pra ver algum peixinho, não só
essas tatuíras que ficam se enfiando pelos dedos. Pena a areia assim
quente a essa hora, mas caminhando aqui pela beira, por dentro da
água gelada, tá bem bom...
Não
entendi essa ideia do Edegar, trazer a pretinha pro nosso fim de
semana. Aliás, ter adotado essa criatura foi um completo desvario.
Depois de mais de dez anos tentando, o mínimo que eu merecia era um
anjinho de cabelo louro como o meu, um serafim de olhos azuis que me
ficasse bem no colo, que eu pudesse postar fotos nas redes sociais
sem assustar as gurias da academia. Mas vir com esse bom coração de
capitão de indústria arrependido e catar logo a pelúcia mais
horrenda da loja, uma macaquinha negra, meio renga e de olho caído.
Francamente, Edegar. Bem que tu mereceu a minha encarnação de
Lisístrata, vai ficar na mão ainda um bom tempo.
Às
vezes eu penso que a Dona Lídia não gosta muito de mim. O pai não,
o pai desde o primeiro momento me deu aquele abraço apertado, passou
a mão no meu nariz escorrendo e me disse baixinho no
ouvido vou-te-tirar-daqui-garota-isso-aqui-não-é-vida.
E agora não tem nem três meses que estou com eles e já me trazem
pra ver o mar. Eu achei sempre que só ia ter a visão do mar do
filme da sereia que a gente via no abrigo, mas lá o mar era cinza
escuro e a areia cinza mais claro, desbotado, e não dava pra sentir
o quente na sola do pé ou o gelo nas canelas.
Pensando
bem, eu podia ter trazido o estropício pra caminhar comigo. Não que
eu fosse matar a minha vontade de dar um caldo na pretinha, mas pelo
menos uma conversa séria a gente podia ter, lá em casa nunca
ficamos sozinhas, eu podia ensinar uma ou duas coisas sobre mandar e
obedecer, sem o olhar de buldogue do plasta do Edegar, podia mostrar
como dói uma orelha bem puxada. O que mais vou ensinar pro monstro?
a jogar tênis no clube? a experimentar vestido? a saber a diferença
entre o talher da salada e o do peixe?
Ah,
o sono depois de três caipiras, numa sombra de praia, tem outra
textura e duração. Cadê a menina, será que foi com a Lídia? Eu
sabia que a ideia de um fim de semana na praia era boa, a Lídia
torceu o nariz a princípio, mas agora tá aí, levando a moleca pela
mão pra caminhar na beira. Com sorte estão tomando um picolé, ou
fazendo castelo na areia molhada. As coisas vão se ajeitar. O nosso
dever de estender a mão vai ser cumprido, no fim das contas, com
alegria e devoção.
Será
que tem problema se eu entrar e me refrescar só um pouco? O paredão
tá tão longe, não aguento dar mais nem um passo. Que sede. Vou
entrar só um pouquinho, só até a barriga, o pai disse três
vezes: Umbigo. Umbigo. Umbigo.
E nunca vou desobedecer o paizinho. O pai. A Dona Lídia. O pai. A
dona Lídia. Será que um dia vai me dar coragem de chamar a Dona
Lídia de mãe, de mamãe, de mãezinha?
Pronto.
Solzinho gostoso. Caminhada firme de quarenta minutos. Estou em dia
de novo com o clericot e os anéis de lula. Pena o Edegar não poder
aproveitar essa disposição toda, minha greve não tem dia para
acabar. Ele vai sentir o aperto, é carola só do lado de fora da
cama, já deve estar subindo as paredes. Azar. Quem mandou me
apresentar essa? Agora tá lá no guarda-sol com a cabeça cheia de
caipira, nem aí pra negrinha. Cadê o diabo da negrinha?
Ui.
Água boa. A onda é mesmo brava como a gente vê no desenho. E dá
uns puxões no corpo quando volta, tem que fincar bem o pé no fundo
da areia pra gente não ser levada. Como será que é um pouco mais
lá pro fundo, será que é ainda mais geladinho, que a onda não é
tão forte?
Que
bom. Lá vem a Lídia. O sol tá forte, já é hora de levantar
acampamento. Cadê a guriazinha?
É
pra isso que vocês querem ter pai e mãe? Sair daqui, onde tem cama,
comida, aula, brinquedo, pra cair na mão de uma bruxa dessas? alguém
aqui sabe nadar? Acham que paizinho e mãezinha vão cuidar, vão
cair na água pra salvar? Nessa hora
sempre começavam os gemidos assustados, os soluços, os choros, as
menores se abraçando nas mais taludas. Quando as novatas eram
meninas maiores, com peitinho e tal, preferia contar a história do
paizinho abusador, que visitava o quarto no meio da madrugada para um
boa noite especial. Com as pequerruchas, porém, nada superava a
história da menina perdida no mar gelado, o repuxo traiçoeiro.
Hora
de desligar as luzes, cambada de medrosas. Não quero ver ninguém
molhando a cama. Pronto.
Reafirmado o posto de veterana, de comandante-em-chefe, de maioral do
abrigo. A partir de amanhã teria mais essa leva de abandonadas na
mão, seguidoras e subservientes, até que uma a uma fossem sendo
resgatadas por alguém e outras viessem em substituição. Como nos
últimos dez anos. Deitada no beliche central, no escuro do
alojamento, fechou bem o olho bom e tentou ignorar, só por mais uma
noite, o gosto de água salgada nos lábios e o quente da areia fofa
entre os dentes.
***